quinta-feira, 19 de novembro de 2009

A jumenta de Balaão

Balac filho de Sefor era rei de Moab quando Israel acampou nas planícies do seu reino, do outro lado do Jordão. Assustado com as inumeráveis vitórias de Israel contra seus adversários, Balac enviou mensageiros ao profeta Balaão (Bilam ben Beor) para que esses lhe transmitissem o seguinte recado: “Acaba de sair do Egito um povo que cobre a superfície da terra, e veio morar perto de mim. Peço-te, portanto, que venhas amaldiçoá-lo para mim, pois é um povo mais forte do que eu. Talvez assim consiga derrotá-lo e expulsá-lo do país. Pois, eu sei que fica abençoado quem abençoas, e amaldiçoado quem amaldiçoas”.

Depois de ouvir os mensageiros enviados por Balac, Balaão lhes disse: “Passai a noite aqui, e vos darei a resposta de acordo com o que o SENHOR me falar”. À noite, depois de consultar o SENHOR, Este lhe diz: “Não vás com eles nem amaldiçoes esse povo, pois é abençoado”. Quando amanhece o dia, Balaão despede os mensageiros de Balac dizendo que Deus se recusou em deixá-lo ir amaldiçoar a Israel.

O rei de Moab, não se convencendo da resposta enviada por Balaão, manda novos mensageiros para insistirem com o profeta. Balac conhecia muito bem a fama de Balaão e por isso agora resolve ser mais direto, oferecendo-lhe um bom pagamento pelo seu serviço. Resistente, o profeta manda dizer: “Ainda que Balac me desse o seu palácio cheio de prata e ouro, eu não poderia transgredir as ordens do SENHOR meu Deus, fazendo qualquer coisa por mínima que seja.” Percebemos, no entanto, que Balaão diz uma coisa e está pensando noutra bem diferente. Na verdade ele quer voltar atrás, afinal a oferta fora boa. É como se ele levantasse a hipótese de que Deus pudesse mudar de ideia, e diz então: “Assim sendo, ficai aqui também vós esta noite, para que eu saiba o que o SENHOR tem a me dizer de novo”. E eis que o profeta tinha razão, finalmente Deus parecia ter mudado de ideia e o autoriza a seguir os mensageiros de Balac. “Na manhã seguinte – continua o texto bíblico –, Balaão levantou-se, encilhou a mula e acompanhou os chefes moabitas.”

No caminho, porém, acontece o inesperado: a jumenta na qual Balaão ia montado simplesmente empaca e não quer mais seguir viagem. Insatisfeito, certamente já seduzido pelos presentes que ganharia do rei, o profeta espanca violentamente sua jumenta. Bate uma, duas, várias vezes. Percebendo que Balaão ia acabar matando a jumenta, “então o SENHOR abriu a boca da mula, e ela disse a Balaão: ‘Que te fiz eu, para me espancares já pela terceira vez?’” Depois de uma longa discussão entre o profeta e sua jumenta, “o SENHOR abriu os olhos de Balaão, e ele viu o anjo do SENHOR parado no caminho, com a espada desembainhada na mão. Balaão ajoelhou-se e prostrou-se por terra.” E, contrariamente ao que Balac esperava, Balaão abençoa a Israel.

A história de Balaão, que nos é contada no livro de Números (Bamidbar) pode, muito bem, ser lida como uma parábola. E é também um alerta para aqueles que se consideram sábios e entendidos e professam a não existência de Deus baseados na falta de provas materiais. Talvez por isso mesmo Jesus Cristo, como bom conhecer da história de Balaão e sua jumenta, diz: “Eu te louvo, Pai, Senhor do céu e da terra, porque escondeste estas coisas aos sábios e entendidos e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, assim foi do teu agrado”.

Por mais conturbado que esteja o mundo, não há porque se desesperar. Nem tudo está perdido. O que nos resta é ler os sinais dos tempos, ainda que eles não venham da boca de cientistas e intelectuais, mas dos lábios da jumenta de Balaão.

Por Tarzan Leão, filósofo e escritor.

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

O homem é a medida de todas as coisas

A grande crise moral pela qual passamos é assustadora. Essa crise, em alguns aspectos, é decorrente do relativismo ético que campeia a sociedade contemporânea. Uma sociedade onde ninguém é de ninguém e os valores parecem desmoronar-se um pouco a cada dia.

Parte desse relativismo surge como consequência da ética burguesa e da valorização exacerbada do indivíduo em detrimento da coletividade. O “eu” cresceu de tal forma que suplantou o “nós”, de modo que fez crescer a falsa ideia de que o mais importante é o que “eu” sinto, o que “eu” vejo, no que “eu” acredito e assim sucessivamente. O problema é que esse é, por contraditório que pareça, o caminho mais curto que existe para a intolerância e o totalitarismo.

É atribuída a Protágoras (Abdera, 485 a.C. - Sicília, 410 a.C.) a frase que uso para dar título a este artigo. E resume, de forma lapidar, todo o relativismo dos Sofistas, corrente filosófica à qual ele está vinculado. Para os sofistas (sofista quer dizer, literalmente, sábio), a experiência individual é o único critério real da verdade. Ou seja, não existem leis eternas e verdades objetivas, mas tão-somente opiniões. Os sofistas eram professores viajantes que andavam pelas cidades gregas ensinando retórica, lógica e filosofia. Eles, à semelhança de muitos profissionais da atualidade, não estavam preocupados com aquilo que seus alunos pudessem fazer com o que eles ensinavam. A questão ética não estava em discussão. Foi Protágoras quem disse “que cada um de nós é a medida das coisas que são e que não são; mas existe uma diferença infinita entre homem e homem, e exatamente por isso as coisas parecem e são de um jeito para uma pessoa e, de outro jeito, para outra pessoa”. Sócrates vai posicionar-se radicalmente contra esse tipo de pensamento, buscando demonstrar a necessidade de uma ética universal e que servisse para todos e em qualquer lugar.

Para Protágoras, por exemplo, os modos de organização social e política são criados pelos homens de acordo com as circunstâncias e conveniências, e não de um princípio de justiça universal. Isso também acontece no âmbito da moral. Para ele, bem e mal não passam de valores que os homens resolveram chamar por esses nomes.

Certa feita um professor de filosofia perguntou a seus alunos o que é fazer o bem, ao que um aluno respondeu: fazer o bem é ajudar ao próximo. Descontente com a resposta, o professor colocou a seguinte questão: suponhamos que, ao retornar à sua casa, logo ali na praça você se depara com uma cena inusitada: uma pessoa está tentando abrir um carro forçando a porta. Vendo você se aproximar, lhe faz o seguinte pedido: “amigo, me faça um favor, fique aí nessa esquina olhando e, se por acaso aparecer alguém, me avise”. Como agir diante de tal situação? Fazer o que pede essa pessoa é ajudar? E, para a surpresa do professor, o seu aluno disse “sim”, e completou: “se o carro é dele ou não, isso não é problema meu”.

O profissional que mais se aproxima dos sofistas é o marqueteiro, trabalhe ele com marketing político ou comercial. Esses profissionais, geralmente, não querem saber, por exemplo, se o cigarro provoca câncer ou se o álcool gera dependência. O que importa é se o produto vai vender. Ele também não quer saber se determinado político é honesto ou se irá defender os interesses dos menos favorecidos. A ele o que importa saber é se o seu candidato vai ganhar as eleições. E repetem, para o consolo da própria consciência, a máxima “pagando bem, que mal tem?”,

Protágoras, assim como o seu relativismo, foi condenado e teve de deixar a pólis grega, morrendo num naufrágio na Sicília. Porém, sua filosofia ainda teima em viver e o pior é que não faltam adeptos para segui-la.

Por Tarzan Leão, filósofo e escritor.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Os burros governam o mundo

A impressão que tenho é que os insensatos governam a humanidade. Há, por assim dizer, uma conspiração com o fim último de a irracionalidade nos dominar completamente. E pensar nesse assunto quase sempre me tira o sono.

Na verdade, terei de reformular a primeira sentença deste artigo. O que acontece, de fato, é que um pequeno grupo, detentor de poder, quer que sejamos burros, tolos ou insensatos – o adjetivo, neste caso, pouco importa. Sinto isso claramente quando ligo a TV aos domingos. É inacreditável que determinados programas encontrem telespectadores e, mais ainda, caros anunciantes. A televisão brasileira nos idiotiza do nascer ao por do sol. E o pior é que não fazemos nada para mudar esse quadro. Usar o controle remoto de pouco adianta, pois há poucos lugares aonde ir. Dos trinta canais disponíveis na parabólica, apenas uns cinco se salvam. Assim, quanto maior o número de canais, mais aumenta a quantidade de lixo entrando diariamente em sua casa.

Um país como o nosso não pode mesmo ser sério. Pois, enquanto o salário de um professor habilitado – em Minas Gerais – gravita em torno de R$ 808,00, o que a Rede Record paga a Gugu Liberato, de acordo com o que foi divulgado pela mídia, ultrapassa os R$ 3 milhões mensais. Aí me sinto ultrajado enquanto professor. Isso significa que terei de trabalhar 312 anos, ou ainda 3.750 meses, ou pior, 112 mil e 500 dias para receber o salário que o Gugu ganha durante um mês apenas para idiotizar o povo brasileiro nas tardes de domingo.

Na política, não é diferente. Essa, talvez, seja uma das razões porque a educação pública brasileira é tão ruim. Quanto mais idiota formos, melhor será para a classe política continuar no poder. O professor, para não passar fome, precisa ter dois ou três empregos. Aí não sobra tempo para a formação permanente nem menos dinheiro para comprar livros e se manter atualizado. Isso sem contar o nível dos alunos das escolas públicas. Muitos chegam ao Ensino Médio sem dominar a leitura e a escrita, requisitos básicos para que se possa exercer de fato a cidadania. Enquanto isso tome Faustão, Gugu, Ratinho, Geraldo, Gimenez e tantos outros lixos exibidos em horário nobre.

E ainda, cinicamente, fingimos não entender as causas da violência. Vejo a violência urbana muito mais como uma reação a essa triste situação, do que uma ação pura e simples de gente que não tem lei. Somente assim os pobres são vistos pela sociedade. Os donos do poder não estão nem aí para as centenas de milhares de brasileiros que não tem onde morar nem onde plantar. Mas, basta ocupar uma terra, ou uma área qualquer nas grandes cidades, para abrirem espaço na mídia. Então os comentaristas de plantão esbravejam, gritam, condenam os pobres, enfim.

Não, os burros não governam o mundo. O mundo é governado por homens e mulheres inteligentíssimos e nós, o povo, é que somos os burros. E burros de carga ainda por cima, para carregar em nossa garupa os espertalhões que nos espoliam.

Por Tarzan Leão, filósofo e escritor.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Os justos são responsáveis pelo mal

O mal existe e não há como negá-lo. Ele está presente em nosso dia-a-dia e, embora se apresente com os mais diversos nomes, é sempre possível identificá-lo.

A questão do mal sempre inquietou a filósofos e teólogos. Aliás, me arrisco a dizer que uma das razões para a existência da religião seja a luta do homem contra o mal. Porém, o mal não é algo que esteja apenas fora de mim, ou no outro. O mal enquanto potência – e aqui recorro a Aristóteles – está dentro de mim e de você que agora lê este artigo. De modo que a luta contra o mal para ser eficaz há de ter dois alvos: precisamos lutar contra o mal que está no outro e travar, diuturnamente, a nossa luta pessoal contra o mal que está dentro de nós mesmos. Na maioria das vezes ele está adormecido – enquanto potência – de maneira que nem o percebemos; mas, de uma hora para outra ele pode se manifestar – passando a ato – e até nos surpreender. É quando perdemos a razão e cometemos as piores atrocidades.

Não penso a questão do mal de um ponto de vista dualista. Sou, por princípio, contrário a qualquer ideia que possa levar a algum tipo de dualismo. Nós, seres humanos, somos, em essência, uns desequilibrados, homo sapiens demens, conforme as mais recentes conceituações antropológicas. Segundo essa ideia, o Homem não é apenas um ser dotado de razão e entendimento, mas também, e, sobretudo, dotado de paixões, cóleras, gritos, mudanças abruptas de humor, manifestando uma afetividade extrema e que o leva ao desatino.

A sociedade brasileira está mergulhada numa profunda crise ética e moral. A família, núcleo primevo de qualquer sociedade, está completamente desestruturada. É claro, a questão social, embora não seja determinante, tem uma influência enorme nesse triste quadro. Pais desempregados, ou mesmo pais e mães que saem para trabalhar e são forçados a deixar seus filhos na rua, à mercê da própria sorte, tudo isso deixou a família vulnerável, frágil, desprotegida. Não bastasse tudo isso, a proliferação de entorpecentes – álcool, crack, maconha, merla – surge como a porta principal para a entrada num mundo sombrio donde só se sai quase sempre para a morte.

É preciso lutar contra o mal. Porém, o que muitos considerados justos fazem é simplesmente cruzar os braços, principalmente se ainda não foram atingidos diretamente pelo mal. Noutras palavras, não basta ser justo, ser bom não é suficiente; é preciso lutar permanentemente por um mundo melhor, por uma sociedade onde possamos viver em harmonia, tal qual sonhou Isaías (65, 20-25) quando anunciou um tempo novo para Israel. Assim disse o profeta sobre a nova Sião: “Não haverá ali crianças que só vivam alguns dias, nem adultos que não completem os seus dias, pois será ainda jovem quem morrer com cem anos. Não alcançar os cem anos será maldição. [...] Ninguém trabalhará sem proveito, ninguém vai gerar filhos para morrerem antes do tempo, porque esta é a geração dos abençoados do SENHOR, ela e seus descendentes. [...] Lobo e cordeiro pastarão juntos, o leão comerá capim junto com o boi, quanto à serpente, a terra será seu alimento. Ninguém fará o mal, ninguém pensará em prejudicar na minha santa montanha” — diz o SENHOR.”

Para viver esse novo tempo, basta querer. Só depende de nós. De cada um de nós.

Por Tarzan Leão, filósofo e escritor.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

Tempo e mistério

A grande singularidade do tempo consiste no fato de que o tempo não é mensurável. Pensar o tempo, ou mesmo a História, apenas enquanto algo linear, cronológico, é absolutamente insensato. É querer aprisionar dentro de um simples conceito algo que está muito além da própria razão.

Os gregos conceituavam o tempo de duas formas: chronos e kairos. Enquanto chronos se refere ao tempo cronológico, ou sequencial, que pode ser medido (como por exemplo, dividimos as eras em anos, os anos em meses, os meses em semanas, as semanas em dias, os dias em horas e assim sucessivamente), kairos se refere a um momento indeterminado no tempo, em que algo especial acontece (em teologia, é "o tempo de Deus"). Em termos práticos, podemos dizer o seguinte: uma hora é sempre uma hora (tempo cronológico). Mas, há uma grande diferença em ficar esperando a pessoa amada durante uma hora e permanecer com a mesma pessoa durante o mesmo espaço de tempo (tempo kairológico). São experiências absolutamente distintas. Eu diria até opostas. Dependendo da situação, três minutos pode parecer uma eternidade e uma noite chega a passar sem nos darmos conta. Porque o tempo vai acontecer sempre na esfera do estritamente pessoal. É o que experimentam duas torcidas. Imagine o Mineirão cheio, final do Campeonato Mineiro, Atlético e Cruzeiro se enfrentando. Aos 20min do primeiro tempo o Galo faz um gol, 10min depois outro gol. A partir daí é só sofrimento para as duas torcidas. De um lado, atleticanos querem que o jogo termine logo, do outro, cruzeirenses querem que demore. E as torcidas olham para o placar, conferem o relógio, gritam para o árbitro, sofrem, roem as unhas. Para uns, o tempo não passa, para outros, corre rápido até demais.

Outra forma de ver o tempo é enquanto passado, presente e futuro – ou sequencial. Ora, pensando assim, ainda fica mais difícil conceituar o tempo. Vejamos. A respeito do futuro há pouco o que falar, pois simplesmente o futuro não existe. O futuro, filosoficamente falando, está tão-somente na esfera do vir-a-ser e dele, nada conhecemos. Não sabemos, por exemplo, se existirá um amanhã, pelo menos para mim, que agora escrevo, e para você, que nesse instante me lê. De modo que discutir o futuro é como conjeturar a respeito do sexo dos anjos. E logo que o futuro acontece, ele já não é mais futuro, ele é o presente, outra esfera de tempo. Porém, à medida que o futuro se faz presente, ele se transforma em passado e, em sendo pretérito, também já não existe mais. Ou seja, apenas o presente existe e assim mesmo durante um milionésimo de tempo, e quase sempre o desperdiçamos.

Ninguém consegue aprisionar o Tempo. Arrisco-me a dizer que é no Tempo que a presença de Deus se torna mais visível. Perscrutar o Tempo é a forma mais sutil de se entender a Deus. Uma chave de leitura para esta ideia está na vocação de Moisés. Quando Deus o chama para libertar os hebreus das mãos do faraó, Moisés disse a Deus: “Eis que quando eu vier aos filhos de Israel e lhes disser: ‘O Deus de vossos pais enviou-me a vós’ – eles dirão para mim: ‘Qual é o Seu Nome?’ – e o que direi a eles? E Deus disse a Moisés: ‘Serei o que serei.’ E disse: ‘Assim dirás aos filhos de Israel: Serei enviou-me a vós’.” Aqui, Deus Se coloca como o próprio Senhor do Tempo. E é justamente isso que significa o tetragrama YHWH, que designa o nome de Deus: Serei! Para quem não está familiarizado com a língua hebraica, é interessante saber que o tetragrama YHWH está associado à noção de tempo, uma vez que contém o radical do verbo existir ou do verbo Ser.

Refletir sobre o tempo é pensar a nossa própria transitoriedade, a nossa própria “impermanência”. No dizer de Nilton Bonder, a noção de tempo “é o instrumento maior do pensamento e, ao mesmo tempo, seu maior obstáculo. Sua utilidade é tão grande quanto a limitação que nos impõe. Nossa mais sólida referência e também nossa maior ignorância”. Devemos ser/estar conscientes que o tempo não volta. Sendo assim, é urgente viver como se fosse o último dia e trabalhar no Tempo de Deus.

Tarzan Leão é filósofo e escritor.

quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Considerações acerca de Deus

Por Tarzan Leão*

A crença em um único Deus é uma das questões centrais do Antigo Testamento. A ideia vai aparecer com Abraão e, de maneira sistemática, no livro de Êxodo (Shemot), com a solene proclamação do Decálogo. Mas, vai insistentemente percorrer todo o Pentateuco até estruturar-se enquanto uma teologia. E será, em momentos cruciais da história de Israel, tema constante na boca dos Profetas. Tudo isso, porque se vivia num mundo politeísta no qual a crença em muitos deuses era bastante comum, de modo que todos estavam diariamente expostos aos perigos da idolatria, que é a prática de adorar falsos deuses.

Há em Deuteronômio (Devarim) uma das mais belas orações da Torah (que significa ensinamento, Lei), que é o Shemá Israel. É a leitura bíblica que os religiosos católicos leem aos domingos durante as Completas (oração da noite) e que, por sua vez, todo judeu faz ao levantar e antes de deitar: “Escuta, Israel! O Eterno é nosso Deus, o Eterno é um só! E amarás ao Eterno, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas posses. E estas palavras que eu te ordeno hoje estarão sobre o teu coração, e as inculcarás a teus filhos, e delas falarás sentado em tua casa e andando pelo caminho, ao deitar-te e ao levantar-te. E as atarás como sinal na tua mão, e serão por filactérios (Téfilin) entre os teus olhos, e as escreverás nos umbrais (Mezuzá) de tua casa e nas tuas portas.” O texto de rara beleza nos exorta a sempre lembrar do nosso pertencimento ao Deus Único, independentemente de quaisquer condições. Entenda-se por pertencimento um total despojamento de nós mesmos, principalmente de nossos desejos e vontades.

Popularizou-se muito na atualidade certa teologia da prosperidade. No seu bojo está a ideia de um deus provedor, muitas vezes até em contradição ao Deus que nos foi revelado nas Escrituras. O deus apregoado por essa corrente teológica é uma deidade puramente taumaturga, muito mais preocupada em resolver nossos problemas meramente humanos, alguns deles fruto de nossas próprias limitações. Ora, esquecem-se eles que o problema de Deus é, por assim dizer, muito mais escatológico do que ontológico. Ou seja, devo procurar a Deus em busca de conforto espiritual com vistas a um projeto de salvação da minha alma, e não para salvar a situação da minha empresa, curar essa ou aquela doença que pode muito bem ser resolvida através do SUS (Sistema Único de Saúde).

Essa falsa teologia disseminou na sociedade contemporânea a ideia de um deus-muleta, que serve tão-somente para curar nossas enfermidades – e também para rechear a conta bancária de muita gente. Os fazedores de milagres estão diuturnamente nas telas da TV exibindo as suas façanhas. Eles curam os mais diversos tipos de doença, levantam empresas falidas e restauram casamentos. A impressão que me dá é que esses bem intencionados líderes jamais leram o livro de Jó.

Jó, diz a Sagrada Escritura, “era íntegro e reto, temia a Deus e mantinha-se afastado do mal. Tinha sete filhos e três filhas. Possuía também sete mil ovelhas, três mil camelos, quinhentas juntas de bois, quinhentas jumentas, e servos em grande quantidade. Era, pois, o mais rico entre todos os habitantes do Oriente.” Porém, eis que num certo dia Jó perdeu tudo: filhos e filhas, casa, animais, campos, tudo o que possuía enfim. “Então Jó levantou-se, rasgou as vestes, rapou a cabeça, caiu por terra e, prostrado, em adoração, falou: “Nu, saí do ventre de minha mãe e nu, voltarei para lá. O SENHOR deu, o SENHOR tirou; como foi do agrado do SENHOR, assim aconteceu. Seja bendito o nome do SENHOR!”

Ora, o amor a Deus não pode, ou pelo menos não deve, estar vinculado à nossa condição terreal. Ele deve, para ser verdadeiro, ser sempre incondicional. O milagre se realiza não somente quando Deus me cura de determinado mal – até porque a medicina existe para isso: curar nossas doenças –, mas quando eu vivo o seu amor e sou um testemunho apesar da minha enfermidade. Ainda que eu seja pobre, ainda que não tenha o que comer e o que beber e nem onde morar, posso ser um testemunho da graça santificante de Deus entre os humanos. Porque o amor de Deus, ou a Deus, não está vinculado às contingências da vida. Vai muito alem. E Jó é sempre uma boa resposta aos que colocam o nosso relacionamento com Deus vinculado à prosperidade, à saúde e à estabilidade econômica.

Mais ainda: de Deus basta querer o Seu Reino, e tudo o mais virá por acréscimo. Até porque nossas cobiças e vontades nem sempre refletem o que realmente o Eterno quer para nós, porque somos, muitas vezes, movidos por anseios mesquinhos. Talvez por isso o décimo mandamento seja uma condenação peremptória a qualquer tipo de desejo: “Não cobiçarás a casa do teu próximo. Não cobiçarás a mulher do teu próximo, nem seu escravo, nem sua escrava, nem seu boi, nem seu jumento, nem coisa alguma do que lhe pertença”.

Isso, porém, não nos coloca numa condição de meros seres passivos no processo. O que o texto sagrado vem nos lembrar é que nem sempre aquilo que queremos para nós é legítimo, ainda que seja o restabelecimento de uma grave enfermidade. Há interesses recônditos dos quais nem sempre temos plena consciência e que governam a nossa vida afastando-nos do Deus de Abraão, de Isaac e Jacó, e que nos foi revelado por Jesus Cristo, seu filho único, nosso Senhor e Salvador.

O autor é filósofo e escritor.

sábado, 3 de outubro de 2009

AS SETE TAÇAS DA IRA DE DEUS - Romance - cap.3

3. Manágua, julho de 1980

“Isto é apenas o começo. Em pouco tempo toda a América Latina será nossa”, disse o velho guerrilheiro.

“Como sonhava o Che?”

“Sim. Como sonhava El Comandante.

“Com uma grande diferença: a Igreja agora é nossa aliada.”

“Marx deve se revirar no próprio túmulo vendo uma cena dessa: cristãos e revolucionários. Juntos. Aliás, mais que isso: os dois opostos habitando um mesmo ser.”

“O Manifesto nunca se aplicou ipsis litteris aqui na América Latina. Somos um povo ímpar. Vocês europeus jamais nos compreenderão.”

“São contraditórios. Boçais. Impossível conceitua-los com precisão positivista.”

“Por acaso vocês pretendem colocar na bandeira da Nicarágua a Cruz e o Fuzil ao invés da Foice e do Martelo comunistas?”

“Não. Não chegaremos a tanto. Seria uma provocação. Roma não aceitaria.”

“E quanto aos padres guerrilheiros?”

“Os cristãos latino-americanos foram muito além do que se pensava deles. São mais fiéis e obstinados do que muitos camaradas comunistas. Para eles viver a revolução é experimentar o próprio sofrimento do Cristo Crucificado. E têm uma grande vantagem à frente dos ateus: eles acreditam na vida após a morte e crêem piamente que essa luta ao lado dos oprimidos vai redimir a todos eles. Então lutam até á morte sem medo.”

“Para eles a morte não existe.”

“Sim, para eles a morte é apenas uma passagem para uma outra vida, bem melhor do que essa que vivemos aqui na terra.”

“Nosso maior objetivo é tomarmos o poder no Brasil. Um país com dimensões continentais que faz fronteira com quase todos os países da América do Sul. Só assim teremos condições de levantarmos a voz contra o Inimigo do Norte. Cuba e Nicarágua sozinhos não representam nada para os Estados Unidos. Seremos esmagados ao primeiro desafio. Lembrem-se da Baía dos Porcos e do quanto Reagan já investiu na Contra durante todos esses anos.”

“Muitos Vietnãs?”

“Sim. Che tinha razão também nessa questão.”

“O Brasil jamais fará uma revolução.”

“E quanto às greves dos metalúrgicos?”

“Não resultará em revolução.”

“Também penso assim. Mas a ditadura militar já dá claros sinais de cansaço. Não demorará muito e os militares entregarão o poder aos civis.”

“Pacificamente, Rafael?”

“Eleitoralmente, eu diria.”

“Falou o brazilianista!”

“Pára de gozação, carajo!”

Era o mês de julho e Manágua estava agitada naqueles dias. Esquerdistas de todo a América Latina estavam hospedados na cidade para celebrarem o primeiro aniversário do triunfo da Revolução Sandinista, quando cristãos, comunistas, socialistas e nacionalistas tomaram o poder das mãos do tirano Anastácio Somoza. Os versos do monge-poeta e ministro da cultura Ernesto Cardenal e também de Rubén Darío ecoavam nos alto-falantes espalhados pela Praça da Revolução, enquanto um grupo de sindicalistas, intelectuais, músicos e religiosos brasileiros articulava um encontro com o líder cubano Fidel Castro, maior estrela internacional da manifestação.

Quando o desfile militar começou os guerrilheiros da Frente Sandinista de Libertação Nacional desfilaram exibindo os seus fuzis ao som do Hino da FSLN, tremulando suas bandeiras rubro-negras desafiando o poder dos Estados Unidos, que àquela época tinha como mandatário Ronald Reagan, o ator medíocre que se elegera Presidente da República.

Aqueles ainda eram tempos em que se acreditava em revoluções populares.

A esquerda latino-americana começava a ressurgir após vários anos sofrendo as conseqüências das sangrentas ditaduras militares que dominavam o continente, agora sob as bênçãos de boa parte da hierarquia da Igreja Católica, adepta da Teologia da Libertação, corrente teológica surgida no Brasil e no Peru, e que fora sistematizada pelos teólogos Leonardo Boff e Gustavo Gutiérrez, respectivamente. Mas logo essa vertente ganhou adeptos e defensores em todo o Continente, principalmente dos bispos que participaram do Concílio Vaticano 2º, das Conferências de Medellín, em 1968 na Colômbia e da de Puebla, em 1979, no México, quando numa decisão inédita fizeram uma opção preferencial pelos pobres. Sindicalistas, artistas e demais lideranças populares encontraram na Igreja o abrigo perfeito para exercitarem a sua liderança, a salvos do Estado que oprimia e perseguia. E a Nicarágua surgia como algo novo, principalmente porque as forças revolucionárias foram formadas de muitos militantes cristãos, insatisfeitos com a ditadura de Anastácio Somoza.

Na noite anterior ao aniversário da revolução, á beira da piscina, todos bebiam e conversavam animados, ocupando uma mansão imensa, que antes pertencera a um grande industrial, ligado ao antigo regime. Sandinistas, políticos, religiosos, sindicalistas e artistas de todos os países americanos contavam seus feitos, tendo como fundo musical canções de Violeta Parra, Pablo Milanês, Mercedes Sosa, Chico Buarque, Geraldo Vandré, Juan Baez e tantos outros cantores e cantoras de protesto.

Uma brisa suave soprava em torno da piscina, contrastando com o clima quente e úmido no interior da mansão, uma casa com mais de cinqüenta cômodos erguida num bairro nobre de Manágua.

Muito embora a comitiva que viera do Brasil estivesse hospedada em uma outra casa, muitos brasileiros estavam ali naquela noite tomando uísque, vinho do porto e fumando charutos cubanos, gentilmente oferecidos pelo governo de Fidel Castro, que também era aguardado ali naquela noite para cumprimentar alguns visitantes ilustres: o metalúrgico Lula, que começava a despontar como a maior liderança popular do Brasil, o ex-guerrilheiro José Dirceu, que se exilara na Ilha durante alguns anos antes de retornar ao Brasil depois de se submeter a uma cirurgia plástica para não ser reconhecido, o dominicano Frei Betto, que amargara quatro anos de prisão acusado de ações terroristas e o frade franciscano Leonardo Boff, principal expoente da teologia da libertação. Quando o relógio marcava quase uma hora da manhã Fidel Castro foi anunciado. Um grande alvoroço tomou conta do ambiente, pois a maioria presente jamais vira o líder da Revolução Cubana pessoalmente.

Para a nossa surpresa, Castro se fazia acompanhar de ninguém menos que Luiz Carlos Prestes, o líder comunista brasileira que retornara do exílio um ano anos, depois de anos vivendo em Moscou com sua família. Prestes, com seus pouco mais de 1 metro e 60 centímetros de altura praticamente sumia diante dos mais de 2 metros de Fidel, vestindo o seu clássico uniforme verde-oliva.

O Comandante dispensou todo o tipo de cerimônias. O seu ajudante de ordens puxou uma cadeira e Prestes se sentou, acendeu um charuto e só depois a conversa fluiu, um pouco tensa por parte dos brasileiros que não sabiam o quê falar diante da presença da maior liderança viva da esquerda mundial. Fidel se mostrou simpático, puxava conversa com um, com outro, queria saber que opinião os dois religiosos presentes tinham a respeito do Papa João Paulo 2º, demonstrando certa preocupação com os rumos que o comunismo poderia tomar na Polônia, onde começava a emergir a figura do líder sindical e presidente do sindicato Solidariedade, Lech Walesa que, ao que parecia, tinha o apoio incondicional do papa Wojtyla.

“O que pensa do papa Wojtyla, frei Leonardo?”, perguntou Fidel.

“O seu pontificado começa a me preocupar. É certo que apoiou a opção pelos pobres feita pelos bispos em Puebla. Mas as suas relações com Ronald Reagan têm-me preocupado bastante, Comandante.”

“E você, Betto, o que diz?”

“Vai se inclinar mais e mais para a direita. Basta ver com quem são os seus interlocutores aqui no Brasil.”

“E as comunidades de base?”

“Felizmente estão muito distantes de Roma. O Vaticano parece não enxergá-las ainda”, disse Frei Betto.

“Mas e quanto ao padre Gutiérrez?”

“Foi chamado à Roma para explicar-se diante do Tribunal do Santo Ofício. Recebeu apenas uma pequena advertência”, respondeu o teólogo brasileiro.

“Isto é um mau sinal”, disse Fidel.

“Sim, é um mau sinal.”

“E quanto a você?”, indagou Castro.

“Estão analisando o meu livro Jesus Cristo Libertador faz tempo. Por enquanto ainda não fui citado. Penso que não vai dar em nada também”, respondeu.

“Comandante, por que não escrevemos um livro a quatro mãos sobre fé?”, perguntou Frei Betto.

Yo no lo a tengo”, respondeu.

“Então sobre a ausência da fé, por exemplo”, insistiu.

“É uma idéia para ser pensada”, respondeu Castro.

“Você é batizado...”

“Sim, sim. Recebi todos os sacramentos católicos: fui batizado, fiz catecismo, depois fui crismado. Meus pais eram muitos religiosos. Talvez eu aceite o seu convite”, depois completou olhando para Lula, que permanecia calado durante o colóquio, “o que acha, companheiro?”

“É uma boa idéia”, respondeu lacônico.

“Vai ser bom para os cristãos engajados”, disse o teólogo brasileiro.

“Amanhã estarei num jantar em casa de Sérgio Ramires. Você é meu convidado, frei. Poderemos aprofundar mais este assunto durante o jantar. Combinado?”

“Combinado”, confirmou Frei Betto.

A noite seguia mansa, Fidel circulava livremente entre os vários grupos que se formavam no em torno da piscina. Garçons circulavam com dificuldade por entre os inúmeros convidados, muitos dos quais exalando um cheiro forte de rum, uísque, vinho e charuto. Isto era a própria revolução.

O Brasil era visto com bons olhos. Alguns analistas internacionais enxergavam que muito proximamente teríamos no país um governo de esquerda, idéia esta que não era seguida pelos intelectuais brasileiros, que tinham diante de si um quadro muito mais complexo do que viam os brasilianistas.

Bianca ficara no hotel naquela noite. Farta de me ouvir falar em revoluções e, especialmente na sandinista, que havia lhe roubado o seu grande amor, preferiu ficar dormindo aguardando as comemorações do dia seguinte, e que deveriam se estender durante o dia inteiro.

Quando a vi se preparar para dormir, perguntei:

“Não vai comigo, mana?”

“Estou farta de revoluções.”

“Cardenal me falou que o Fidel irá visitar a comitiva brasileira. Não quer conhecê-lo?”

“Prefiro dormir. Pode ir tranqüilo.”

“Mas nós quase não conversamos depois que você chegou do Brasil.”

“E você acha que vai haver espaço pra mim? Não, não quero disputar espaço com Fidel, Lula; com o pessoal do Brasil. Assim você fica mais livre. Quando chegar, me acorde, pode ser?”

“Tudo bem. Mas sua presença ia me fazer muito bem, pode ter certeza.”

“Eu sei. Na verdade estou muito cansada. A viagem não foi das melhores, você sabe. O avião fez quatro conexões. Quando vocês tomarem o poder no Brasil, coloquem pelo menos um vôo diário São Paulo-Manágua”, disse rindo.

“Vou sugerir isso ao companheiro Lula”

“Sei que vai. Agora pode ir. E fique tranqüilo, desmanche essa carinha que estou bem. Só estou um pouco cansada da viagem.”

Vivendo na Nicarágua desde dezembro de 1978, quando fui conhecer a comunidade de Soletiname, onde o monge-poeta Ernesto Cardenal fundara um pequeno mosteiro trapista, não se passaram nem três meses da minha chegada ao país e lá estava eu empunhando um fuzil para ajudar a depor o ditador Anastácio Somoza. Jovens colombianos, cubanos, salvadorenhos, brasileiros, chilenos, peruanos e hondurenhos deixaram seus países de origem e ingressaram na FSLN movidos pelo desejo de participarem de uma revolução.

Quando saí do Brasil com destino a Manágua não planejava participar do processo revolucionário até porque eu me encontrava bastante fragilizado, o coração ferido depois de uma grande crise amorosa.

Conheci o padre Cardenal durante uma palestra que ele fez no convento que os dominicanos têm nas Perdizes, em São Paulo. Naquela mesma noite acertamos que eu iria passar uns meses — seis, talvez —, na comunidade de Soletiname. Foi o que eu fiz.

Um mês depois deixei o Brasil e me mudei para o pequeno arquipélago onde ficam os monges trapistas, seguidores do pensamento de Thomas Merton, de quem Cardenal fora noviço durante a década de sessenta no mosteiro de Getsêmani, no estado de Kentucky, nos Estados Unidos.

Não demorou muito e comecei a participar de reuniões com jovens sandinistas. Esse foi o primeiro passo para ingressar na Frente, depois que recebi uma dispensa do próprio pe. Cardenal, um entusiasta do movimento fazia anos.

Durante mais de seis meses não fiz contato algum com meus familiares brasileiros. Sabiam apenas que eu havia viajado para a América Central, mas sem muitos detalhes. Eu precisava desaparecer do mapa, deixar a crise na qual eu estive envolvido diminuísse um pouco. Só uma pessoa sabia exatamente onde e o que eu estava fazendo: minha irmã Bianca.

Ao deixar a comunidade de Soletiname passei três meses recebendo treinamento militar: aulas de teoria e estratégia militar; estudamos exaustivamente A guerra de guerrilhas e os Textos revolucionários de Ernesto Che Guevara, além de aulas práticas de guerrilha urbana e rural, antes de receber a boina preta e o brasão da FSLN. Eu já estava pronto. Agora era ir à luta.

Como medida de segurança, nesse período quase não me correspondia com ninguém. Às vezes, de madrugada, ouvíamos rádio nos acampamentos ou quando chegávamos a algum povoado cuja população apoiava a luta de Sandino. Em muitos lugares éramos recebidos como heróis, o que nos dava a certeza de que a revolução ia triunfar, e de que tudo era apenas uma questão de tempo.

Ao amanhecer acordávamos com os companheiros cantando o hino da FSLN, o que muito nos animava:

Adelante marchemos compañeros
avancemos a la revolución
nuestro pueblo es el dueño de su historia
arquitecto de su liberación.

Combatientes del Frente Sandinista
adelante que es nuestro porvenir
rojinegra bandera nos cobija
¡Patria libre vencer o morir!

Às vezes numa vila, numa cidade, quando o povo avistava um guerrilheiro, começava a cantar:

Los hijos de Sandino
ni se venden ni se rinden
luchamos contra el yankee
enemigo de la humanidad.

Adelante marchemos compañeros
avancemos a la revolución
nuestro pueblo es el dueño de su historia
arquitecto de su liberación

Hoy el amanecer dejó de ser una tentación
mañana algún día surgirá un nuevo sol
que habrá de iluminar toda la tierra
que nos dejaron los mártires y héroes
con caudalosos ríos de leche y miel.

E acreditávamos, sim, na justeza de nossa luta. Que íamos transformar a Nicarágua num paraíso aqui na terra: acabar com o analfabetismo, nacionalizar as indústrias, fazer uma ampla reforma agrária, ampliar o precário sistema de saúde. Por fim banir do país todos aqueles que participaram da repressão comandada pelo tirano Anastácio Somoza, tão logo entrássemos vitoriosos em Manágua.

Também naquela noite, quando alguém trocava o LP, sempre colocava o hino da FSLN, mas quase ninguém ouvia, embora ele continuasse emocionando a todos. Enquanto isso o Comandante continuava conversando, dando uma aula de história da América Latina. Conhecia a fundo o Brasil, principalmente os grupos de esquerda ainda em atividade. Mas não acreditava que a retomada da democracia brasileira se daria de um dia pra noite

“Os militares não entregarão o poder nem tão cedo”, dizia.

“A volta dos exilados deu novo ânimo ao povo. A oposição ao regime está mais fortalecida. Muito em breve teremos eleições gerais.”

“Mas não pra presidente.”

“Para governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores. A maior eleição desde 1964.”

“Sim, eu sei. E para presidente?”

“Figueiredo diz que vai entregar o poder aos civis.”

“Fala quando?”

“Se não houver um outro golpe, em cinco anos teremos um presidente civil. Acredito que um grande movimento de mobilização nacional pode forçar ao velho general convocar eleições diretas para presidente da República.”

“Com aquele Congresso?”

“Daqui a dois anos vamos eleger outro Congresso. A oposição terá maioria.”

“Vamos lançar Lula como candidato a Governador por São Paulo.”

“Como vai o partido, companheiro?”, perguntou Fidel, se referindo a Lula sempre como companheiro.

“Está crescendo. Estamos formando núcleos no país inteiro.”

“O que pensa, Velho?”, perguntou Fidel a Prestes, que se mantinha calado, acompanhando atentamente a conversa.

“De fato, a volta dos exilados trouxe ânimo ao povo. Arraes e Brizola devem se eleger governadores nas próximas de eleições. Mas precisamos formar uma grande frente, reunindo todos as pessoas que se identificam com a luta contra a ditadura militar. Ninguém deve estar preso à sigla ou tendência. Essa luta pertence mais ao povo brasileiro do que à classe política propriamente dita. Outro fator também muito importante é que não fique presa a nomes definidos previamente. Mais importante do que a ou b ser o candidato da maioria é definirmos um calendário eleitoral para escolhermos o próximo presidente. De outra forma o movimento pode caminhar para o fracasso.”

Bianca estava certa, o assunto naquela noite não foi outro senão política latino-americana. Especulava-se, naquele início da década de 1980, uma maneira de a esquerda brasileira chegar ao poder sem ser por meio das armas, hipótese há muito tempo abandonada pelas lideranças sérias e conhecedoras da realidade nacional. As tentativas fracassadas de Lamarca, Marighela e da Guerrilha do Araguaia só reforçavam a tese de que dificilmente o povo brasileiro se envolveria num processo revolucionário para a tomada do poder. E as teses neste sentido eram muitas, indo da diversidade cultural do país ao jeito malandro do brasileiro, mais preocupado com carnaval e futebol do que com qualquer outra coisa.

Para muitos, a participação da Igreja junto aos movimentos populares era fundamental para qualquer projeto de mobilização social. A teologia da libertação, que já preocupava setores do próprio Pentágono, que a viam como mais perigosa do que o próprio movimento comunista internacional, funcionava como a grande catalisadora de forças naquele momento, unindo Fé e Política através de um discurso articulado unindo, pela primeira vez, setores da esquerda radical com os organismos católicos, antes identificados muito mais com o poder do que com aqueles que a ele se opunham.

Perto das 2 horas da manhã chegou um grupo de membros do governo nicaragüense e se juntou à conversa. Pe. Cardenal, agora ministro de Estado, era um deles. Desde que ele assumira o Ministério da Cultura que não nos víamos. Abraçou-me efusivamente, perguntou o que eu tinha feito, se estava tudo bem, enfim, perguntas que um pai faz a um filho que há muito tempo não encontra.

Dos brasileiros ali presentes naquela noite de julho, apenas eu participara da Revolução Sandinista diretamente, empunhando armas, lutando lado a lado dos guerrilheiros, até entrar triunfalmente em Manágua no dia da vitória. Por isso mesmo, em reconhecimento a essa participação efetiva, tão logo Ortega assumiu o poder um dos primeiros atos foi conceder a cidadania nicaragüense a todos os estrangeiros que empunharam armas nos dias de luta. Uma vez cidadão nicaragüense, isso nos dava o direito de participar do governo, seja do Poder Legislativo, Executivo ou do Judiciário. Não aceitei cargo público, mas, como professor da Universidad Nacional de Manágua, fui indicado para fazer parte do Conselho Nacional da Educação, cargo que exerço, mas que não é remunerado. Paradoxalmente sou o único estrangeiro que faz parte do conselho e também o membro mais jovem. Isso me assustou um pouco no início, mas com o tempo, fui me acostumando à idéia graças ao pe. Miguel d´Escoto, ministro da Educação, com quem nos reuníamos a cada quinze dias para consultas e deliberações administrativas.

Anos mais tarde Frei Betto escreveria um livro que se tornara best-seller, Fidel e a religião, fruto daquela noite nicaragüense. O escritor brasileiro conseguiu agendar uma entrevista com o Comandante Castro para dali a algum tempo em seu gabinete em Havana, Cuba, para conversarem sobre Deus, religião, fé e experiência revolucionária.

Não demorei muito no Conselho Nacional da Educação nem na Universidad Nacional de Manágua, como planejava. Disputas internas e as constantes lutas pelo poder me afastaram dessas funções por acreditar que decididamente não nascera para o exercício direto e pleno do poder, mas apenas como fomentador de lutas. Saí de Manágua e permaneci alguns meses na América Central participando da organização de campesinos e estudantes numa época quando ainda se acreditava na força histórica dos pobres. Durante esses quase doze meses estive clandestino, depois de conseguir uma nova identidade com alguns amigos sandinistas. Mudara de nome e de nacionalidade embora fosse visível pelo meu sotaque que eu não era centro-americano, como queria fazer crer. Nesse período suspendi minhas correspondências com o Brasil e mesmo com alguns setores do governo nicaragüense, ao qual eu ainda estava de certa forma ligado, uma vez que continuava sendo financiado pelos sandinistas, junto com outros agitadores espalhados por diversos países latino-americanos. A cada quinze dias enviava um relatório para o Comitê Revolucionário relatando as minhas atividades e isso era tudo. Como gozava de total confiança, raramente tinha de apresentar quaisquer recibos que comprovassem os meus gastos extras, que eram ressarcidos sem questionamentos.

Depois do triunfo da Revolução Cubana, em 1959, o primeiro movimento que de fato acendeu o sonho da esquerda latino-americana tomar o poder foi a Revolução Sandinista, em 1979, portanto vinte anos depois do sonho cubano. Che Guevara nunca havia sito tão discutido desde a sua morte, nas selva bolivianas, em fins da década de 1960.

Porém um novo ingrediente se juntava às leituras que fazíamos dos clássicos do marxismo internacional: a teologia da libertação e alguns documentos da Igreja.

Nomes como os de Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, José Comblin, Jon Sobrino e Enrique Dussel eram citados sem constrangimentos junto aos de Marx, Engels, Lênin e Mão pelos teóricos dessa nova esquerda. As Castas da Prisão do dominicano Frei Betto eram discutidas e estudadas pelos grupos de base assim como as Cartas do Cárcere do comunista italiano Antonio Gramsci, sem que questões de fé se sobrepusessem às de libertação. Como os movimentos populares, notadamente o movimento sindical, eram perseguidos pelos governos ditatoriais, as igrejas abriram as suas portas para que os grupos de base pudessem estudar a realidade iluminados não pelos estudos de Marx, mas pela Bíblia Sagrada, para eles a palavra do Deus dos oprimidos, o mesmo Deus que havia tirado os hebreus do Egito, quando ali eram escravizados pelo Faraó, e os conduzido à Terra Prometida.

Permaneci calado a maior parte do tempo aquela noite. Aliás, nesses momentos quase sempre gosto de ser espectador. Um certo alheamento, um distanciamento toma conta de mim de modo que me abstraio, viajo para uma outra dimensão bem diferente daquela à qual estão ligados os que me cercam. Foi o que me aconteceu naquela madrugada em Manágua, 19 de julho, quando nos preparávamos para festejar o primeiro aniversário da revolução. Nem mesmo os tiros de canhão, que aconteciam a cada hora em diferentes pontos da cidade durante toda a noite, eram capazes de me reconduzir de volta à realidade. Ainda assim continuei acompanhando o grupo de brasileiros. Talvez pelo simples prazer de ouvir a língua e o sotaque brasileiros, dos quais eu estava saudoso, embora não houvesse me dado conta disso antes de reencontrar os meus patrícios.

Quando cheguei ao hotel onde Bianca estava o dia já se fazia claro, mas ela ainda dormia.

“Que horas são?”, perguntou.

“Seis e meia”, respondi.

“Ficaram até agora conversando?”

“Sim. Fidel apareceu por lá. Ninguém queria largar o Comandante. Você sabe.”

“É. Imagino. Havia muitos brasileiros?”

“Alguns.”

“Conversou muito?”

“Quase nada. Fiquei mudo, sentado num canto ouvindo-os conversar.”

“E agora, qual é a nossa programação, pequeno comandante?”, disse Bianca rindo.

“Agora quero tomar um bom banho quente, depois descer pra tomarmos café. Daqui a pouco temos de comparecer na Praça da Revolução, lembra?”

“Ah, é? Eu havia me esquecido que tenho um irmão revolucionário.”

“Então trate de levantar, tomar um banho quente e demorado, vestir a sua mais bela roupa porque uma multidão nos espera nessa manhã.”

“Como você vai vestido? De guerrilheiro?”

“Claro. Ou você esquece que, mesmo estrangeiro, sou um dos heróis da revolução?”, falei rindo. “Agora falando sério, todos nós da FSLN iremos uniformizados. E não chore de emoção quando o seu irmão querido for condecorado com a medalha Augusto César Sandino. Combinado?”

“Pode ficar tranqüilo. Eu não vou chorar. Para mim você continuando sendo o mesmo de sempre.”

“E então, vamos tomar banho?”, falei.

“Sim, vamos.”

Manágua exalava euforia e esperança naqueles dias de julho. As várias delegações estrangeiras deambulavam pelas ruas da cidade visitando centros culturais, museus, bibliotecas, escolas, teatros, cinemas. Imensos outdoors ostentavam fotos dos principais líderes da revolução, além de trechos de poemas de Rúben Darío, Ernesto Cardenal e outros poetas populares. A Nicarágua se transformara de uma hora para outra numa espécie de Nova Canaã, para onde seguiam todos aqueles que sonhavam com a implantação de governos populares no continente americano.

Embora a Guerra Fria já desse sinais de que, de fato, havia esfriado, os soviéticos abriram as portas para a Nicarágua uma vez que as relações com os Estados Unidos estavam praticamente cortadas. Não só o governo de Reagan fizera uma série de restrições comerciais, como era o principal patrocinador da Contra, o grupo que tentava desestabilizar e, por fim, apear do poder os sandinistas, agora liderados por Daniel Ortega. Vindos de Honduras e de El Salvador, os Contra não davam paz nessas regiões de fronteira, mesmo depois de um ano de instalado o governo revolucionário. Ainda assim a Nicarágua resistia.

Longe de serem resolvidos, problemas sociais se acumulavam em todos os cantos do país: desnutrição, analfabetismo, desemprego, falta de moradia, saúde pública precária. E fome, muita fome. Contudo, a Nicarágua ainda era o sonho de toda a esquerda latino-americana.

Poucos na Comunidade de Soletiname conheciam a minha história quando lá cheguei. O pe. Cardenal fez uma apresentação simples, disse apenas que me conhecera quando estivera no Brasil e que me convidara para passar uma temporada no arquipélago. Ali entrei em contato mais profundo com a obra de Thomas Merton, o monge trapista americano que inspirara a comunidade.

Thomas Merton, em verdade, não era americano, embora sua mãe o fosse. Nasceu em Prades, uma pequena cidade do sul da França, em 31 de janeiro de 1915, mas depois de perder os pais, acaba mudando para os Estados Unidos onde completa seus estudos, doutorando-se em letras inglesas.

Sem formação religiosa definida — o pai era anglicano e a mãe quaker —, converte-se depois ao catolicismo romano e, em 10 dezembro de 1941 entra para a Trapa de Nossa Senhora de Getsêmani, no Kentucky, Estados Unidos, lá permanecendo até morrer eletrocutado num ventilador da General Electric, em Bancoc, Tailândia, em 10 de dezembro de 1968, onde participava de um encontro com líderes religiosos do Oriente e do Ocidente. De modo que, como pe. Cardenal havia sido seu noviço na década de 1960, aquela comunidade era, de certa maneira, filha do pensamento de Thomas Merton e nós, seus discípulos.

Naqueles primeiros dias em Soletiname arrisquei-me a ler, pela primeira vez no original inglês, The seven story mountain, o que para mim foi mais do que uma leitura prazerosa: foi um verdadeiro desafio. Porém como já conhecia o texto em português, ia aqui e ali adivinhando o que de fato eu não sabia. Assim, ia aprofundando o meu inglês por meio da obra de Merton e treinando o espanhol diariamente através da leitura da Bíblia e do Saltério, recitado em comum com os outros irmãos na pequena capela. E lia, também, a belíssima adaptação dos Salmos, feita pelo pe. Cardenal, quando estava sozinho em minha cela antes da noite chegar totalmente, lançando o seu silêncio em Soletiname.

Mas havia certa curiosidade em torno de mim por parte dos vários rapazes que compunham a comunidade. Porém apenas o pe. Cardenal conhecia a minha história, pois eu havia lhe contado tudo na noite em que nos conhecemos em São Paulo.

Embora teoricamente eu estivesse certo de minha nova opção — deixar a comunidade trapista e entrar para a Frente Sandinista —, não foi fácil saber que eu estava indo para o campo de batalha pronto pra matar ou morrer. E, por mais contraditório que pareça à primeira vista, quando se aproxima o momento de ir para o campo de batalha, a gente se sempre mais preparado pra morrer do que para matar. Claro, essa visão é muito particular, principalmente em si tratando de um religioso, como era o meu caso. De modo que, quando recebemos a boinha, o lenço rubro-negro e o distintivo da FSLN numa cerimônia concorrida, numa pequena localidade perto da fronteira com Honduras, eu já não estava mais tão convicto de que fizera a coisa certa: trocar a vida de noviço trapista pela vida de guerrilheiro sandinista.

O caminho da luta armada não é nada fácil, mesmo quando se tem o apoio popular, como foi o caso de Cuba, em fins da década de 1950, e o recente caso da Nicarágua. Tudo levava a crer que o movimento ia triunfar, bastava olhar nos olhos do povo, que já estava cansado do tirano que oprimia e que tinha levado toda uma nação à miséria. Cada cidade que tomávamos, crescia a certeza na vitória final. Em muitas localidades não chegamos a disparar um só tiro. Bastava chegar um destacamento da FSLN para o próprio administrador local, fosse ele o prefeito ou o seu substituto, entregar a administração municipal em nossas mãos. Nestes casos não havia substituição, a não ser que a própria população assim o desejasse. O simples fato de reconhecerem a autoridade sandinista, já era suficiente para merecerem a nossa confiança. Também porque precisávamos de gente na frente de batalha e não atrás de uma escrivaninha dando ordens.

As notícias que tive do Brasil nesse período eram muito poucas. De madrugada, quando muitos dormiam, eu tentava localizar alguma rádio brasileira que transmitisse em ondas curtas para saber das notícias. Quando isso não acontecia, recorria à transmissão da BBC para os países de língua portuguesa. Como estava no campo de batalha, se tornava impossível mandar ou receber correspondência de familiares e amigos.

Fiquei sabendo da volta dos exilados brasileiros quando já tínhamos tomado Manágua, depois do 19 de julho, momento em que as coisas começaram a ficar mais tranqüilas para todos nós. Embora ainda houvesse focos de resistência ao novo governo, o fato de estarmos no poder dava um pouco mais de tranqüilidade uma vez que o comando de todas as instituições estavam sob nossa tutela.

Devido a presença maciça de cristãos engajados, sacerdotes e freiras, o governo revolucionário evitava, ao máximo, os expurgos, os exílios e, principalmente, as execuções de traidores do regime ou de fiéis ao tirano. Pouco depois da tomada do poder foram montados Conselhos Revolucionários que tinham como tarefa principal acatar, julgar, absolver ou condenar, além de executar as sentenças contra os traidores da pátria. Escapei desses conselhos sob a alegação de ser estrangeiro, de não conhecer tão profundamente a realidade, com todas as suas nuances, suas redes familiares etc. e tal. Felizmente os meus argumentos convenceram os dirigentes.

Uma coisa é a luta, a batalha frente a frente com o inimigo, ambos armados, prontos para atirar. Nessas horas disparamos o primeiro tiro mais movidos pelo medo do que por qualquer outro sentimento. O que é bem diferente de participar de um tribunal encarregado de decidir se alguém deve morrer ou viver, tudo isso friamente. Eu não teria estômago para tanto. Sempre me assustou muito a idéia do paredón, por mais que ele seja necessário quando se quer estabelecer no poder através da força, mesmo que esta força tenha o apoio popular, como era o nosso caso na Nicarágua sandinista. Tivemos muitas discussões a esse respeito. Os padres, freiras e cristãos engajados discordavam de alguns dirigentes que pregavam com veemência a necessidade dos expurgos e de todos os seus derivados ou variantes. Muito embora a revolução tivesse endurecido em muito aqueles corações, a idéia do perdão ainda estava presente dentro de cada um dos cristãos sandinistas. As discussões teóricas se prolongavam pela noite adentro, permeadas de citações de Lênin, Santo Agostinho, Mao, São Gregório, Trotsky, Santo Tomás, Che, dos Evangelhos, Fidel, e de tantos outros. Chegou-se, enfim, a um meio termo: as execuções seriam evitadas, mas não abolidas totalmente. Em casos de traição, de lesa-pátria, e quando o exílio representasse tão-somente um paliativo, ou um perigo, el paredón seria aplicado, mas apenas como último recurso.

Por onde andaria Bianca durante esse tempo? O que estaria acontecendo à minha irmã e grande amor da minha vida? Eu não sabia. No fundo eu procurava esquecê-la, fosse me enclausurando numa trapa ou me lançando na arriscada aventura de uma revolução num país da América Central ou onde quer que fosse.

Durante cerca de dois anos e meio não mandei nem recebi notícias do Brasil. Por mais que sofresse de saudade, eu tinha consciência de que essa ausência era necessária para acalmarem-se os ânimos e cessar a polêmica que o caso criou no âmbito da Igreja Católica e em alguns setores da imprensa sensacionalista brasileira. De todos que ficaram e acompanharam esse caso de perto, apenas Bianca sabia que meu desaparecimento era temporário. Que nada, nem a distância nem o tempo, seriam suficientes para me fazer esquecê-la. E eu sabia que com ela não era diferente.

Enquanto isso, o tempo corria e os inimigos da revolução sandinistas começavam a pôr as unhas de fora.

Não foi fácil o estabelecimento da ordem pública e social na Nicarágua pós-revolução sandinista. Assim que percebeu que o governo caminhava rumo ao socialismo, o arcebispo de Manágua, monsenhor Miguel Obando Y Bravo, começou a criticar os líderes sandinistas e os rumos que o país estava tomando. Nessa ofensiva sobrou para mim, inclusive, pois além de meu trabalho acadêmico, militava em grupos ligados à Igreja Católica. E não durou muito tempo para dom Obando Y Bravo conseguir um dossiê completo sobre minhas atividades no Brasil, inclusive as denúncias da prática de incesto, condenada pelo catolicismo, e envia-lo para o Vaticano, além de dar ampla divulgação na imprensa nicaragüense, sobretudo nos jornais que faziam oposição ao governo.

Pouco ou quase nenhum efeito suas denúncias tiveram. Eu era um ilustre desconhecido, usava um codinome e ninguém conseguiu fotografia atualizada, mas uma antiga foto 3x4 enviada pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, comandada pelo meu conterrâneo, o Cardeal Eugênio Salles, ligado à ala conservadora católica, junto com o famoso dossiê, no qual sofri a primeira denúncia de incesto devido ao envolvimento amoroso que mantinha com a minha irmã Bianca, antes de aceitar o convite do pe. Cardenal para entrar para a Comunidade de Soletiname. Com barba e cabelos grandes, meu rosto guardava muito pouco dos traços originais que apareciam nas fotografias do La Prensa, jornal da família Chamorro, liderado por Violeta Chamorro, que se bandeara para a oposição depois de receber doações de empresários estadunidenses e do próprio governo Reagan.

Na universidade onde eu lecionava só uns poucos estudantes estabeleceram certas relações entre as matérias comigo, mas nada que comprometesse o meu trabalho.

Apesar de não prestar muita atenção ao noticiário, acender aquela polêmica só me faria mal, disso eu tinha certeza. Mesmo sabendo pelo noticiário que o velho cardeal havia enviado um relatório para o Vaticano me denunciando pela prática de incesto, tomei a decisão de não acompanhar o processo, razão pela qual nem sequer procurei entrar em contato com o meu advogado na corte pontifícia, o padre jesuíta Eliomar Ribeiro, doutor em direito canônico que acompanhara o primeiro processo, cujo denunciante tinha sido o cardeal Salles.

Nos primeiros meses após nossa entrada vitoriosa em Manágua chegamos a pensar que o governo não completaria um ano, tão virulenta era a oposição que enfrentava dentro e fora do país.

Em poucos meses a Contra estava com suas fileiras cheias, inclusive muitos dissidentes do regime levaram para ela toda a sua experiência revolucionária, tirando-nos o sono e a tranqüilidade. Por outro lado o Governo Reagan alimentava a Contra de armas sofisticadas, munição e dinheiro, além de nos impor um pernicioso embargo comercial, alegando que a aproximação do governo sandinista da União Soviética e de Cuba transformava a Nicarágua num inimigo em potencial dos interesses dos Estados Unidos na América Central.

Para tentar romper o cerco, Ortega convidou duas personalidades ilustres para visitarem o país: o papa João Paulo II e Madre Teresa de Calcutá, cujas irmãs se espalhavam pelo país tratando dos feridos dos combates.

Diante de um estádio cheio, la madre de los pobres, ao invés de denunciar o mal que o governo Reagan fazia ao país financiando os contra, teve a ousadia de agradecer a ajuda americana ao trabalho humanitário que a sua congregação fazia no país. Não deu outra: a irmã, que décadas depois seria canonizada pelo mesmo João Paulo II, recebeu a maior vaia que alguém poderia receber. Foi mesmo de mau gosto o seu agradecimento ao governo do presidente Reagan, o Grande Satã.

O país estava em ruínas. Os hospitais sem as condições básicas de garantir um bom atendimento; escolas destruídas, o povo assustado, desconfiado, e também decepcionado pois as mudanças e melhorias prometidas pelos líderes da revolução não apareciam.

Ao contrário, alguns dirigentes sandinistas, com a expulsão dos leais ao antigo regime, se apossaram de suas mansões nos bairros nobres de Manágua, para espanto das lideranças populares. Durante a preparação da revolução eram freqüentes as fotos dessas casas nas páginas do jornal da FSLN, o Barricada. Seus donos eram achincalhados, expostos como inimigos da nação. Porque enquanto uma multidão não tinha sequer onde morar, eles residiam em suas belas mansões sem se importarem com o destino do povo. E agora estavam ali, os acusadores de outrora morando nas mesmas belas mansões!

“E então, está gostando de Manágua, mana?” perguntei.

“Um pouco. Quando vocês vão reerguer essa cidade?”

“Vai demorar. O país está passando por sérias dificuldades, o governo Reagan está castigando o país devido à nossa aproximação de Cuba e de Moscou. Como vê, falta tudo neste país: alimentação, transporte, remédios, petróleo. Você não faz idéia o que é comprar uma briga com o Grande Satã.”

“Mas o povo parece alegre.”

“Sim. O povo está alegre. Principalmente hoje, quando comemoramos o primeiro aniversário da revolução. Ninguém agüentava mais tanta opressão. Mesmo faltando muita coisa, pelo menos há liberdade e esperança em dias melhores.”

“E você faz parte disso tudo”, disse Bianca.

“Minha participação foi e continua sendo insignificante, minha irmã. Represento pouco nisso tudo.”

“Você empunhou armas, foi à luta, ajudou a derrotar o tirano. Não era assim que vocês o chamavam?”

“Isso é verdade. Mas desconfio que mesmo sem mim a revolução teria triunfado”, respondi com ar de riso.

“Depois quero que você me fale do Brasil. Minhas informações estão todas atrasadas.”

“Imagino. Ainda demora muito pra chegarmos à Praça da Revolução?”

“Falta pouco. É que o trânsito de Manágua é assim mesmo, caótico.”

“Ele consegue ser um pouco pior do que o de São Paulo.”

“Hoje ele está assim devido às comemorações de aniversário. Normalmente é mais tranqüilo do que isso.”

“Eu preferia ter ficado em seu apartamento. Detesto ter que ficar hospedada em hotel.”

“Meu apartamento é minúsculo. Na verdade é uma quitinete. Depois você vai poder conhecer e verá que agi certo fazendo uma reserva pra você no Hotel Continental.”

“Ainda assim preferiria estar com você.”

“Mas nós não estamos juntos? Não importa muito o lugar.”

“Quanto a isso você tem razão. Você não sente saudade do Brasil?”

“Sinto. É claro que sinto. Mas não pretendo voltar lá nem tão cedo. Por que você não vem passar uma temporada aqui comigo?”, perguntei.

“Não posso largar o trabalho agora. Além do mais papai depende de mim atualmente.”

“Vai ficar só um mês mesmo?”

“E você acha pouco? Logo logo vai estar cheio de mim, vamos apostar.”

“Não fale isso nem de brincadeira.”

Llegamos, comandante”, disse o motorista.

Gracias. Não demorou muito, viu?”

“É verdade, não demorou muito mesmo. Que história é essa de comandante?

“Ele me viu assim, uniformizado, então pensa que sou algum comandante. Esse país está cheio de comandantes agora”, respondi meio sem graça. “A sua credencial. Pendure-a no pescoço para que os seguranças possam ver de longe. Assim evitamos aborrecimentos.”

“Ah, obrigado. Onde vamos ficar?”

“No palanque das autoridades.”

“Mas, por quê? Você não é um simples guerrilheiro?”

“Sou, sou um simples guerrilheiro. Mas é que fui escolhido para representar os estrangeiros que participaram da revolução.”

“Por isso vai ser condecorado?”

“Não, não é por isso.”

“E porque é, então?”

“Por bravura e por ser cristão e revolucionário”, falei.

“Você não me falou sobre isso na carta.”

“Não vinha ao caso.”

“A cerimônia vai demorar muito?”

“Vai. Vai sim. Por quê?”

“Por nada. Perguntei por perguntar. Fidel certamente vai discursar...”

“Claro que vai. A cerimônia está prevista para durar de quatro a cinco horas.”

“Tudo isso? O povo vai desmaiar nesse sol.”

“Todos estão ansiosos por esse dia. Há muitos anos não havia uma festa realmente popular em toda a Nicarágua. O povo daqui parece muito com o do Brasil. Pelo menos no que diz respeito a gostar de festas. Tudo aqui é motivo para uma comemoração. Há poetas por todos os lugares dessa cidade. Depois de uma semana você vai ver que tenho razão.”

Bianca já estava meio cansada de todo aquele alvoroço, e não quis acompanhar o irmão nas outras recepções que se seguiram durante o dia, e retornou ao Hotel Continental, onde estava hospedada, assim que terminou a comemoração na Praça da Revolução.

Estava inquieta naquele fim de tarde e começo de noite, praticamente não havia ficado a sós com o seu irmão, envolvido nas comemorações do primeiro aniversário da revolução. O livro que trouxera para ler durante a viagem, La ciudad y los perros, do peruano Mario Vargas Llosa, descansava solitário no criado-mudo ao lado da cama. “O jeito é reler o livro, a televisão local não passa outra coisa senão a cobertura da festa. E pelo adiantado da hora não vou encontrar nenhuma livraria aberta em toda a Nicarágua”, pensou sem se dar conta de que o país inteiro estava em festa, com todos os estabelecimentos fechados, fossem públicos ou privados. Nem mesmo a alegria de rever o irmão foi suficiente para animá-la a sair do hotel.

Não fazia muito tempo, mas ainda estava vivo em sua memória o dia em que seu irmão chegou falando da decisão de deixar o Brasil e ir morar no arquipélago de Soletiname, na capital nicaragüense, onde estava instalado o mosteiro trapista fundado pelo monge-poeta Ernesto Cardenal, de quem conhecia os versos.

“Talvez seja melhor assim, Bia. As coisas aqui no Brasil estão muito complicadas, não suporto mais tanta pressão.”

“E quanto a mim?”

“Essa viagem não é para sempre. O pe. Cardenal está ciente da nossa situação e falou que assim que as coisas se restabeleceram, posso voltar para o Brasil. Antes devo passar por Cuba, onde vou tirar outros documentos. Roma não pode nem sonhar que estou num mosteiro trapista, mesmo sem o veredicto final do processo. Sou um anátema, esqueceu?”

“Somos, você quis dizer.”

“A pressão maior está sobre mim. Não creio que haverá punição para você. Quando as coisas estiverem bem, a gente se encontra. Quem sabe, resolvo morar em Cuba depois de algum tempo?”

“Em Cuba? Você só pode estar louco! Não, na América Latina não dá pra ficar. Ditadura por ditadura, continuo no Brasil mesmo.”

“Falei isso brincando. E vê se desmancha essa carinha triste que essa viagem não é para sempre. Cê sabe que não sei viver muito tempo longe de você.”

Durante muito tempo ficou sem notícia do irmão, até que estourou a revolução sandinista na Nicarágua e o país começou a ocupar o noticiário dos principais jornais brasileiros e também da televisão. Conhecendo o irmão como conhecia, sabia que não demoraria muito tempo para ele largar a vida tranqüila de Soletiname e ingressar na FSLN.

Foram dias de apreensão e medo.

Quando Anastácio Somoza foi deposto ela ficou mais tranqüila, mesmo não sabendo o paradeiro do irmão. Agora estava ali em Manágua, sozinha num quarto de hotel enquanto o seu amado festejava com amigos os sucessos de uma revolução popular, a primeira a obter sucesso depois de Cuba.

Bianca nunca se sentira atraída por política, de modo que estava longe dela o desejo de participar de qualquer partido ou algo que o valha. Mas sempre respeitou a vontade do irmão, nunca o censurando pelas suas opções políticas. Para ela a liberdade individual de cada um estava acima de tudo e acreditava que esse era o segredo para se manterem unidos durante toda a vida, sem uma discussão acalorada que fosse. Mesmo quando ele resolveu mudar de São Paulo para a Nicarágua, ela o soube respeitar, embora tenha sofrido muito a sua ausência, sobretudo nos primeiros meses. Depois, com o tempo, foi se acostumando.

Pouco depois do triunfo da Revolução Sandinista recebeu uma carta da Embaixada da Nicarágua. No início ficou assustada, pensando no pior. Quando abriu a correspondência deu-se conta que era apenas para que ela confirmasse o seu endereço atual, nada mais. Logo soube do que e de quem se tratava. Semanas mais tarde recebeu uma carta do irmão, fazendo um relato de tudo o que acontecera em sua vida nos últimos dezoito meses, da saída de Soletiname à entrada na FSLN, até o seu ingresso na Universidad Nacional de Manágua e no Conselho Nacional da Educação. Mas não entrava em detalhes quanto a sua vida particular.

A partir dessa carta muitas outras se seguiram.

Em maio de 1980 ele lhe fez o primeiro convite para visitar a Nicarágua. Junto ao convite enviou o número do seu telefone.

“Quando é mesmo esse aniversário?”

Em julho. Dia 19 de julho é o dia D. Virá uma delegação brasileira para a festa. Como não há vôos regulares entre Brasil e Nicarágua, você pode entrar em contato com esse pessoal. Assim fica mais fácil.”

“Você precisa da resposta hoje?”

“Já. Agora.”

“Tudo bem. Eu vou.”

“Quero que venha passar um mês comigo.”

“Um mês? É muito tempo. Tenho trabalho, compromissos.”

“Converse com o seu chefe. Fale que vem em missão diplomática”, falei rindo.

“Vamos ver.”

“Vamos ver, mana? Então é assim que você gosta de mim!”

“Deixe de chantagem. Você é muito impulsivo. Sabe que acabo acatando as suas decisões.”

“Um mês, então?”

“Tudo bem, você venceu. Passo um mês com você aí na Nicarágua.”

“Tenho certeza que você vai amar Manágua.”

“Eu espero. Mas estar em sua companhia já vai ser muito bom.”

Quando desligou o telefone naquela tarde suas mãos suavam frio. Porque sabia que estava cometendo uma loucura. Largar sua vida tranqüila no Brasil para passar mesmo que um mês num país em construção, como era a Nicarágua, arrasado por uma revolução cujas marcas estavam presentes no cotidiano das pessoas. Mas já estava decidido, ia ficar um mês em Manágua.