3. Manágua, julho de 1980
“Isto é apenas o começo. Em pouco tempo toda a América Latina será nossa”, disse o velho guerrilheiro.
“Como sonhava o Che?”
“Sim. Como sonhava El Comandante.”
“Com uma grande diferença: a Igreja agora é nossa aliada.”
“Marx deve se revirar no próprio túmulo vendo uma cena dessa: cristãos e revolucionários. Juntos. Aliás, mais que isso: os dois opostos habitando um mesmo ser.”
“O Manifesto nunca se aplicou ipsis litteris aqui na América Latina. Somos um povo ímpar. Vocês europeus jamais nos compreenderão.”
“São contraditórios. Boçais. Impossível conceitua-los com precisão positivista.”
“Por acaso vocês pretendem colocar na bandeira da Nicarágua a Cruz e o Fuzil ao invés da Foice e do Martelo comunistas?”
“Não. Não chegaremos a tanto. Seria uma provocação. Roma não aceitaria.”
“E quanto aos padres guerrilheiros?”
“Os cristãos latino-americanos foram muito além do que se pensava deles. São mais fiéis e obstinados do que muitos camaradas comunistas. Para eles viver a revolução é experimentar o próprio sofrimento do Cristo Crucificado. E têm uma grande vantagem à frente dos ateus: eles acreditam na vida após a morte e crêem piamente que essa luta ao lado dos oprimidos vai redimir a todos eles. Então lutam até á morte sem medo.”
“Para eles a morte não existe.”
“Sim, para eles a morte é apenas uma passagem para uma outra vida, bem melhor do que essa que vivemos aqui na terra.”
“Nosso maior objetivo é tomarmos o poder no Brasil. Um país com dimensões continentais que faz fronteira com quase todos os países da América do Sul. Só assim teremos condições de levantarmos a voz contra o Inimigo do Norte. Cuba e Nicarágua sozinhos não representam nada para os Estados Unidos. Seremos esmagados ao primeiro desafio. Lembrem-se da Baía dos Porcos e do quanto Reagan já investiu na Contra durante todos esses anos.”
“Muitos Vietnãs?”
“Sim. Che tinha razão também nessa questão.”
“O Brasil jamais fará uma revolução.”
“E quanto às greves dos metalúrgicos?”
“Não resultará em revolução.”
“Também penso assim. Mas a ditadura militar já dá claros sinais de cansaço. Não demorará muito e os militares entregarão o poder aos civis.”
“Pacificamente, Rafael?”
“Eleitoralmente, eu diria.”
“Falou o brazilianista!”
“Pára de gozação, carajo!”
Era o mês de julho e Manágua estava agitada naqueles dias. Esquerdistas de todo a América Latina estavam hospedados na cidade para celebrarem o primeiro aniversário do triunfo da Revolução Sandinista, quando cristãos, comunistas, socialistas e nacionalistas tomaram o poder das mãos do tirano Anastácio Somoza. Os versos do monge-poeta e ministro da cultura Ernesto Cardenal e também de Rubén Darío ecoavam nos alto-falantes espalhados pela Praça da Revolução, enquanto um grupo de sindicalistas, intelectuais, músicos e religiosos brasileiros articulava um encontro com o líder cubano Fidel Castro, maior estrela internacional da manifestação.
Quando o desfile militar começou os guerrilheiros da Frente Sandinista de Libertação Nacional desfilaram exibindo os seus fuzis ao som do Hino da FSLN, tremulando suas bandeiras rubro-negras desafiando o poder dos Estados Unidos, que àquela época tinha como mandatário Ronald Reagan, o ator medíocre que se elegera Presidente da República.
Aqueles ainda eram tempos em que se acreditava em revoluções populares.
A esquerda latino-americana começava a ressurgir após vários anos sofrendo as conseqüências das sangrentas ditaduras militares que dominavam o continente, agora sob as bênçãos de boa parte da hierarquia da Igreja Católica, adepta da Teologia da Libertação, corrente teológica surgida no Brasil e no Peru, e que fora sistematizada pelos teólogos Leonardo Boff e Gustavo Gutiérrez, respectivamente. Mas logo essa vertente ganhou adeptos e defensores em todo o Continente, principalmente dos bispos que participaram do Concílio Vaticano 2º, das Conferências de Medellín, em 1968 na Colômbia e da de Puebla, em 1979, no México, quando numa decisão inédita fizeram uma opção preferencial pelos pobres. Sindicalistas, artistas e demais lideranças populares encontraram na Igreja o abrigo perfeito para exercitarem a sua liderança, a salvos do Estado que oprimia e perseguia. E a Nicarágua surgia como algo novo, principalmente porque as forças revolucionárias foram formadas de muitos militantes cristãos, insatisfeitos com a ditadura de Anastácio Somoza.
Na noite anterior ao aniversário da revolução, á beira da piscina, todos bebiam e conversavam animados, ocupando uma mansão imensa, que antes pertencera a um grande industrial, ligado ao antigo regime. Sandinistas, políticos, religiosos, sindicalistas e artistas de todos os países americanos contavam seus feitos, tendo como fundo musical canções de Violeta Parra, Pablo Milanês, Mercedes Sosa, Chico Buarque, Geraldo Vandré, Juan Baez e tantos outros cantores e cantoras de protesto.
Uma brisa suave soprava em torno da piscina, contrastando com o clima quente e úmido no interior da mansão, uma casa com mais de cinqüenta cômodos erguida num bairro nobre de Manágua.
Muito embora a comitiva que viera do Brasil estivesse hospedada em uma outra casa, muitos brasileiros estavam ali naquela noite tomando uísque, vinho do porto e fumando charutos cubanos, gentilmente oferecidos pelo governo de Fidel Castro, que também era aguardado ali naquela noite para cumprimentar alguns visitantes ilustres: o metalúrgico Lula, que começava a despontar como a maior liderança popular do Brasil, o ex-guerrilheiro José Dirceu, que se exilara na Ilha durante alguns anos antes de retornar ao Brasil depois de se submeter a uma cirurgia plástica para não ser reconhecido, o dominicano Frei Betto, que amargara quatro anos de prisão acusado de ações terroristas e o frade franciscano Leonardo Boff, principal expoente da teologia da libertação. Quando o relógio marcava quase uma hora da manhã Fidel Castro foi anunciado. Um grande alvoroço tomou conta do ambiente, pois a maioria presente jamais vira o líder da Revolução Cubana pessoalmente.
Para a nossa surpresa, Castro se fazia acompanhar de ninguém menos que Luiz Carlos Prestes, o líder comunista brasileira que retornara do exílio um ano anos, depois de anos vivendo em Moscou com sua família. Prestes, com seus pouco mais de 1 metro e 60 centímetros de altura praticamente sumia diante dos mais de 2 metros de Fidel, vestindo o seu clássico uniforme verde-oliva.
O Comandante dispensou todo o tipo de cerimônias. O seu ajudante de ordens puxou uma cadeira e Prestes se sentou, acendeu um charuto e só depois a conversa fluiu, um pouco tensa por parte dos brasileiros que não sabiam o quê falar diante da presença da maior liderança viva da esquerda mundial. Fidel se mostrou simpático, puxava conversa com um, com outro, queria saber que opinião os dois religiosos presentes tinham a respeito do Papa João Paulo 2º, demonstrando certa preocupação com os rumos que o comunismo poderia tomar na Polônia, onde começava a emergir a figura do líder sindical e presidente do sindicato Solidariedade, Lech Walesa que, ao que parecia, tinha o apoio incondicional do papa Wojtyla.
“O que pensa do papa Wojtyla, frei Leonardo?”, perguntou Fidel.
“O seu pontificado começa a me preocupar. É certo que apoiou a opção pelos pobres feita pelos bispos em Puebla. Mas as suas relações com Ronald Reagan têm-me preocupado bastante, Comandante.”
“E você, Betto, o que diz?”
“Vai se inclinar mais e mais para a direita. Basta ver com quem são os seus interlocutores aqui no Brasil.”
“E as comunidades de base?”
“Felizmente estão muito distantes de Roma. O Vaticano parece não enxergá-las ainda”, disse Frei Betto.
“Mas e quanto ao padre Gutiérrez?”
“Foi chamado à Roma para explicar-se diante do Tribunal do Santo Ofício. Recebeu apenas uma pequena advertência”, respondeu o teólogo brasileiro.
“Isto é um mau sinal”, disse Fidel.
“Sim, é um mau sinal.”
“E quanto a você?”, indagou Castro.
“Estão analisando o meu livro Jesus Cristo Libertador faz tempo. Por enquanto ainda não fui citado. Penso que não vai dar em nada também”, respondeu.
“Comandante, por que não escrevemos um livro a quatro mãos sobre fé?”, perguntou Frei Betto.
“Yo no lo a tengo”, respondeu.
“Então sobre a ausência da fé, por exemplo”, insistiu.
“É uma idéia para ser pensada”, respondeu Castro.
“Você é batizado...”
“Sim, sim. Recebi todos os sacramentos católicos: fui batizado, fiz catecismo, depois fui crismado. Meus pais eram muitos religiosos. Talvez eu aceite o seu convite”, depois completou olhando para Lula, que permanecia calado durante o colóquio, “o que acha, companheiro?”
“É uma boa idéia”, respondeu lacônico.
“Vai ser bom para os cristãos engajados”, disse o teólogo brasileiro.
“Amanhã estarei num jantar em casa de Sérgio Ramires. Você é meu convidado, frei. Poderemos aprofundar mais este assunto durante o jantar. Combinado?”
“Combinado”, confirmou Frei Betto.
A noite seguia mansa, Fidel circulava livremente entre os vários grupos que se formavam no em torno da piscina. Garçons circulavam com dificuldade por entre os inúmeros convidados, muitos dos quais exalando um cheiro forte de rum, uísque, vinho e charuto. Isto era a própria revolução.
O Brasil era visto com bons olhos. Alguns analistas internacionais enxergavam que muito proximamente teríamos no país um governo de esquerda, idéia esta que não era seguida pelos intelectuais brasileiros, que tinham diante de si um quadro muito mais complexo do que viam os brasilianistas.
Bianca ficara no hotel naquela noite. Farta de me ouvir falar em revoluções e, especialmente na sandinista, que havia lhe roubado o seu grande amor, preferiu ficar dormindo aguardando as comemorações do dia seguinte, e que deveriam se estender durante o dia inteiro.
Quando a vi se preparar para dormir, perguntei:
“Não vai comigo, mana?”
“Estou farta de revoluções.”
“Cardenal me falou que o Fidel irá visitar a comitiva brasileira. Não quer conhecê-lo?”
“Prefiro dormir. Pode ir tranqüilo.”
“Mas nós quase não conversamos depois que você chegou do Brasil.”
“E você acha que vai haver espaço pra mim? Não, não quero disputar espaço com Fidel, Lula; com o pessoal do Brasil. Assim você fica mais livre. Quando chegar, me acorde, pode ser?”
“Tudo bem. Mas sua presença ia me fazer muito bem, pode ter certeza.”
“Eu sei. Na verdade estou muito cansada. A viagem não foi das melhores, você sabe. O avião fez quatro conexões. Quando vocês tomarem o poder no Brasil, coloquem pelo menos um vôo diário São Paulo-Manágua”, disse rindo.
“Vou sugerir isso ao companheiro Lula”
“Sei que vai. Agora pode ir. E fique tranqüilo, desmanche essa carinha que estou bem. Só estou um pouco cansada da viagem.”
Vivendo na Nicarágua desde dezembro de 1978, quando fui conhecer a comunidade de Soletiname, onde o monge-poeta Ernesto Cardenal fundara um pequeno mosteiro trapista, não se passaram nem três meses da minha chegada ao país e lá estava eu empunhando um fuzil para ajudar a depor o ditador Anastácio Somoza. Jovens colombianos, cubanos, salvadorenhos, brasileiros, chilenos, peruanos e hondurenhos deixaram seus países de origem e ingressaram na FSLN movidos pelo desejo de participarem de uma revolução.
Quando saí do Brasil com destino a Manágua não planejava participar do processo revolucionário até porque eu me encontrava bastante fragilizado, o coração ferido depois de uma grande crise amorosa.
Conheci o padre Cardenal durante uma palestra que ele fez no convento que os dominicanos têm nas Perdizes, em São Paulo. Naquela mesma noite acertamos que eu iria passar uns meses — seis, talvez —, na comunidade de Soletiname. Foi o que eu fiz.
Um mês depois deixei o Brasil e me mudei para o pequeno arquipélago onde ficam os monges trapistas, seguidores do pensamento de Thomas Merton, de quem Cardenal fora noviço durante a década de sessenta no mosteiro de Getsêmani, no estado de Kentucky, nos Estados Unidos.
Não demorou muito e comecei a participar de reuniões com jovens sandinistas. Esse foi o primeiro passo para ingressar na Frente, depois que recebi uma dispensa do próprio pe. Cardenal, um entusiasta do movimento fazia anos.
Durante mais de seis meses não fiz contato algum com meus familiares brasileiros. Sabiam apenas que eu havia viajado para a América Central, mas sem muitos detalhes. Eu precisava desaparecer do mapa, deixar a crise na qual eu estive envolvido diminuísse um pouco. Só uma pessoa sabia exatamente onde e o que eu estava fazendo: minha irmã Bianca.
Ao deixar a comunidade de Soletiname passei três meses recebendo treinamento militar: aulas de teoria e estratégia militar; estudamos exaustivamente A guerra de guerrilhas e os Textos revolucionários de Ernesto Che Guevara, além de aulas práticas de guerrilha urbana e rural, antes de receber a boina preta e o brasão da FSLN. Eu já estava pronto. Agora era ir à luta.
Como medida de segurança, nesse período quase não me correspondia com ninguém. Às vezes, de madrugada, ouvíamos rádio nos acampamentos ou quando chegávamos a algum povoado cuja população apoiava a luta de Sandino. Em muitos lugares éramos recebidos como heróis, o que nos dava a certeza de que a revolução ia triunfar, e de que tudo era apenas uma questão de tempo.
Ao amanhecer acordávamos com os companheiros cantando o hino da FSLN, o que muito nos animava:
Adelante marchemos compañeros
avancemos a la revolución
nuestro pueblo es el dueño de su historia
arquitecto de su liberación.
Combatientes del Frente Sandinista
adelante que es nuestro porvenir
rojinegra bandera nos cobija
¡Patria libre vencer o morir!
Às vezes numa vila, numa cidade, quando o povo avistava um guerrilheiro, começava a cantar:
Los hijos de Sandino
ni se venden ni se rinden
luchamos contra el yankee
enemigo de la humanidad.
Adelante marchemos compañeros
avancemos a la revolución
nuestro pueblo es el dueño de su historia
arquitecto de su liberación
Hoy el amanecer dejó de ser una tentación
mañana algún día surgirá un nuevo sol
que habrá de iluminar toda la tierra
que nos dejaron los mártires y héroes
con caudalosos ríos de leche y miel.
E acreditávamos, sim, na justeza de nossa luta. Que íamos transformar a Nicarágua num paraíso aqui na terra: acabar com o analfabetismo, nacionalizar as indústrias, fazer uma ampla reforma agrária, ampliar o precário sistema de saúde. Por fim banir do país todos aqueles que participaram da repressão comandada pelo tirano Anastácio Somoza, tão logo entrássemos vitoriosos em Manágua.
Também naquela noite, quando alguém trocava o LP, sempre colocava o hino da FSLN, mas quase ninguém ouvia, embora ele continuasse emocionando a todos. Enquanto isso o Comandante continuava conversando, dando uma aula de história da América Latina. Conhecia a fundo o Brasil, principalmente os grupos de esquerda ainda em atividade. Mas não acreditava que a retomada da democracia brasileira se daria de um dia pra noite
“Os militares não entregarão o poder nem tão cedo”, dizia.
“A volta dos exilados deu novo ânimo ao povo. A oposição ao regime está mais fortalecida. Muito em breve teremos eleições gerais.”
“Mas não pra presidente.”
“Para governadores, senadores, deputados, prefeitos, vereadores. A maior eleição desde 1964.”
“Sim, eu sei. E para presidente?”
“Figueiredo diz que vai entregar o poder aos civis.”
“Fala quando?”
“Se não houver um outro golpe, em cinco anos teremos um presidente civil. Acredito que um grande movimento de mobilização nacional pode forçar ao velho general convocar eleições diretas para presidente da República.”
“Com aquele Congresso?”
“Daqui a dois anos vamos eleger outro Congresso. A oposição terá maioria.”
“Vamos lançar Lula como candidato a Governador por São Paulo.”
“Como vai o partido, companheiro?”, perguntou Fidel, se referindo a Lula sempre como companheiro.
“Está crescendo. Estamos formando núcleos no país inteiro.”
“O que pensa, Velho?”, perguntou Fidel a Prestes, que se mantinha calado, acompanhando atentamente a conversa.
“De fato, a volta dos exilados trouxe ânimo ao povo. Arraes e Brizola devem se eleger governadores nas próximas de eleições. Mas precisamos formar uma grande frente, reunindo todos as pessoas que se identificam com a luta contra a ditadura militar. Ninguém deve estar preso à sigla ou tendência. Essa luta pertence mais ao povo brasileiro do que à classe política propriamente dita. Outro fator também muito importante é que não fique presa a nomes definidos previamente. Mais importante do que a ou b ser o candidato da maioria é definirmos um calendário eleitoral para escolhermos o próximo presidente. De outra forma o movimento pode caminhar para o fracasso.”
Bianca estava certa, o assunto naquela noite não foi outro senão política latino-americana. Especulava-se, naquele início da década de 1980, uma maneira de a esquerda brasileira chegar ao poder sem ser por meio das armas, hipótese há muito tempo abandonada pelas lideranças sérias e conhecedoras da realidade nacional. As tentativas fracassadas de Lamarca, Marighela e da Guerrilha do Araguaia só reforçavam a tese de que dificilmente o povo brasileiro se envolveria num processo revolucionário para a tomada do poder. E as teses neste sentido eram muitas, indo da diversidade cultural do país ao jeito malandro do brasileiro, mais preocupado com carnaval e futebol do que com qualquer outra coisa.
Para muitos, a participação da Igreja junto aos movimentos populares era fundamental para qualquer projeto de mobilização social. A teologia da libertação, que já preocupava setores do próprio Pentágono, que a viam como mais perigosa do que o próprio movimento comunista internacional, funcionava como a grande catalisadora de forças naquele momento, unindo Fé e Política através de um discurso articulado unindo, pela primeira vez, setores da esquerda radical com os organismos católicos, antes identificados muito mais com o poder do que com aqueles que a ele se opunham.
Perto das 2 horas da manhã chegou um grupo de membros do governo nicaragüense e se juntou à conversa. Pe. Cardenal, agora ministro de Estado, era um deles. Desde que ele assumira o Ministério da Cultura que não nos víamos. Abraçou-me efusivamente, perguntou o que eu tinha feito, se estava tudo bem, enfim, perguntas que um pai faz a um filho que há muito tempo não encontra.
Dos brasileiros ali presentes naquela noite de julho, apenas eu participara da Revolução Sandinista diretamente, empunhando armas, lutando lado a lado dos guerrilheiros, até entrar triunfalmente em Manágua no dia da vitória. Por isso mesmo, em reconhecimento a essa participação efetiva, tão logo Ortega assumiu o poder um dos primeiros atos foi conceder a cidadania nicaragüense a todos os estrangeiros que empunharam armas nos dias de luta. Uma vez cidadão nicaragüense, isso nos dava o direito de participar do governo, seja do Poder Legislativo, Executivo ou do Judiciário. Não aceitei cargo público, mas, como professor da Universidad Nacional de Manágua, fui indicado para fazer parte do Conselho Nacional da Educação, cargo que exerço, mas que não é remunerado. Paradoxalmente sou o único estrangeiro que faz parte do conselho e também o membro mais jovem. Isso me assustou um pouco no início, mas com o tempo, fui me acostumando à idéia graças ao pe. Miguel d´Escoto, ministro da Educação, com quem nos reuníamos a cada quinze dias para consultas e deliberações administrativas.
Anos mais tarde Frei Betto escreveria um livro que se tornara best-seller, Fidel e a religião, fruto daquela noite nicaragüense. O escritor brasileiro conseguiu agendar uma entrevista com o Comandante Castro para dali a algum tempo em seu gabinete em Havana, Cuba, para conversarem sobre Deus, religião, fé e experiência revolucionária.
Não demorei muito no Conselho Nacional da Educação nem na Universidad Nacional de Manágua, como planejava. Disputas internas e as constantes lutas pelo poder me afastaram dessas funções por acreditar que decididamente não nascera para o exercício direto e pleno do poder, mas apenas como fomentador de lutas. Saí de Manágua e permaneci alguns meses na América Central participando da organização de campesinos e estudantes numa época quando ainda se acreditava na força histórica dos pobres. Durante esses quase doze meses estive clandestino, depois de conseguir uma nova identidade com alguns amigos sandinistas. Mudara de nome e de nacionalidade embora fosse visível pelo meu sotaque que eu não era centro-americano, como queria fazer crer. Nesse período suspendi minhas correspondências com o Brasil e mesmo com alguns setores do governo nicaragüense, ao qual eu ainda estava de certa forma ligado, uma vez que continuava sendo financiado pelos sandinistas, junto com outros agitadores espalhados por diversos países latino-americanos. A cada quinze dias enviava um relatório para o Comitê Revolucionário relatando as minhas atividades e isso era tudo. Como gozava de total confiança, raramente tinha de apresentar quaisquer recibos que comprovassem os meus gastos extras, que eram ressarcidos sem questionamentos.
Depois do triunfo da Revolução Cubana, em 1959, o primeiro movimento que de fato acendeu o sonho da esquerda latino-americana tomar o poder foi a Revolução Sandinista, em 1979, portanto vinte anos depois do sonho cubano. Che Guevara nunca havia sito tão discutido desde a sua morte, nas selva bolivianas, em fins da década de 1960.
Porém um novo ingrediente se juntava às leituras que fazíamos dos clássicos do marxismo internacional: a teologia da libertação e alguns documentos da Igreja.
Nomes como os de Gustavo Gutiérrez, Leonardo Boff, José Comblin, Jon Sobrino e Enrique Dussel eram citados sem constrangimentos junto aos de Marx, Engels, Lênin e Mão pelos teóricos dessa nova esquerda. As Castas da Prisão do dominicano Frei Betto eram discutidas e estudadas pelos grupos de base assim como as Cartas do Cárcere do comunista italiano Antonio Gramsci, sem que questões de fé se sobrepusessem às de libertação. Como os movimentos populares, notadamente o movimento sindical, eram perseguidos pelos governos ditatoriais, as igrejas abriram as suas portas para que os grupos de base pudessem estudar a realidade iluminados não pelos estudos de Marx, mas pela Bíblia Sagrada, para eles a palavra do Deus dos oprimidos, o mesmo Deus que havia tirado os hebreus do Egito, quando ali eram escravizados pelo Faraó, e os conduzido à Terra Prometida.
Permaneci calado a maior parte do tempo aquela noite. Aliás, nesses momentos quase sempre gosto de ser espectador. Um certo alheamento, um distanciamento toma conta de mim de modo que me abstraio, viajo para uma outra dimensão bem diferente daquela à qual estão ligados os que me cercam. Foi o que me aconteceu naquela madrugada em Manágua, 19 de julho, quando nos preparávamos para festejar o primeiro aniversário da revolução. Nem mesmo os tiros de canhão, que aconteciam a cada hora em diferentes pontos da cidade durante toda a noite, eram capazes de me reconduzir de volta à realidade. Ainda assim continuei acompanhando o grupo de brasileiros. Talvez pelo simples prazer de ouvir a língua e o sotaque brasileiros, dos quais eu estava saudoso, embora não houvesse me dado conta disso antes de reencontrar os meus patrícios.
Quando cheguei ao hotel onde Bianca estava o dia já se fazia claro, mas ela ainda dormia.
“Que horas são?”, perguntou.
“Seis e meia”, respondi.
“Ficaram até agora conversando?”
“Sim. Fidel apareceu por lá. Ninguém queria largar o Comandante. Você sabe.”
“É. Imagino. Havia muitos brasileiros?”
“Alguns.”
“Conversou muito?”
“Quase nada. Fiquei mudo, sentado num canto ouvindo-os conversar.”
“E agora, qual é a nossa programação, pequeno comandante?”, disse Bianca rindo.
“Agora quero tomar um bom banho quente, depois descer pra tomarmos café. Daqui a pouco temos de comparecer na Praça da Revolução, lembra?”
“Ah, é? Eu havia me esquecido que tenho um irmão revolucionário.”
“Então trate de levantar, tomar um banho quente e demorado, vestir a sua mais bela roupa porque uma multidão nos espera nessa manhã.”
“Como você vai vestido? De guerrilheiro?”
“Claro. Ou você esquece que, mesmo estrangeiro, sou um dos heróis da revolução?”, falei rindo. “Agora falando sério, todos nós da FSLN iremos uniformizados. E não chore de emoção quando o seu irmão querido for condecorado com a medalha Augusto César Sandino. Combinado?”
“Pode ficar tranqüilo. Eu não vou chorar. Para mim você continuando sendo o mesmo de sempre.”
“E então, vamos tomar banho?”, falei.
“Sim, vamos.”
Manágua exalava euforia e esperança naqueles dias de julho. As várias delegações estrangeiras deambulavam pelas ruas da cidade visitando centros culturais, museus, bibliotecas, escolas, teatros, cinemas. Imensos outdoors ostentavam fotos dos principais líderes da revolução, além de trechos de poemas de Rúben Darío, Ernesto Cardenal e outros poetas populares. A Nicarágua se transformara de uma hora para outra numa espécie de Nova Canaã, para onde seguiam todos aqueles que sonhavam com a implantação de governos populares no continente americano.
Embora a Guerra Fria já desse sinais de que, de fato, havia esfriado, os soviéticos abriram as portas para a Nicarágua uma vez que as relações com os Estados Unidos estavam praticamente cortadas. Não só o governo de Reagan fizera uma série de restrições comerciais, como era o principal patrocinador da Contra, o grupo que tentava desestabilizar e, por fim, apear do poder os sandinistas, agora liderados por Daniel Ortega. Vindos de Honduras e de El Salvador, os Contra não davam paz nessas regiões de fronteira, mesmo depois de um ano de instalado o governo revolucionário. Ainda assim a Nicarágua resistia.
Longe de serem resolvidos, problemas sociais se acumulavam em todos os cantos do país: desnutrição, analfabetismo, desemprego, falta de moradia, saúde pública precária. E fome, muita fome. Contudo, a Nicarágua ainda era o sonho de toda a esquerda latino-americana.
Poucos na Comunidade de Soletiname conheciam a minha história quando lá cheguei. O pe. Cardenal fez uma apresentação simples, disse apenas que me conhecera quando estivera no Brasil e que me convidara para passar uma temporada no arquipélago. Ali entrei em contato mais profundo com a obra de Thomas Merton, o monge trapista americano que inspirara a comunidade.
Thomas Merton, em verdade, não era americano, embora sua mãe o fosse. Nasceu em Prades, uma pequena cidade do sul da França, em 31 de janeiro de 1915, mas depois de perder os pais, acaba mudando para os Estados Unidos onde completa seus estudos, doutorando-se em letras inglesas.
Sem formação religiosa definida — o pai era anglicano e a mãe quaker —, converte-se depois ao catolicismo romano e, em 10 dezembro de 1941 entra para a Trapa de Nossa Senhora de Getsêmani, no Kentucky, Estados Unidos, lá permanecendo até morrer eletrocutado num ventilador da General Electric, em Bancoc, Tailândia, em 10 de dezembro de 1968, onde participava de um encontro com líderes religiosos do Oriente e do Ocidente. De modo que, como pe. Cardenal havia sido seu noviço na década de 1960, aquela comunidade era, de certa maneira, filha do pensamento de Thomas Merton e nós, seus discípulos.
Naqueles primeiros dias em Soletiname arrisquei-me a ler, pela primeira vez no original inglês, The seven story mountain, o que para mim foi mais do que uma leitura prazerosa: foi um verdadeiro desafio. Porém como já conhecia o texto em português, ia aqui e ali adivinhando o que de fato eu não sabia. Assim, ia aprofundando o meu inglês por meio da obra de Merton e treinando o espanhol diariamente através da leitura da Bíblia e do Saltério, recitado em comum com os outros irmãos na pequena capela. E lia, também, a belíssima adaptação dos Salmos, feita pelo pe. Cardenal, quando estava sozinho em minha cela antes da noite chegar totalmente, lançando o seu silêncio em Soletiname.
Mas havia certa curiosidade em torno de mim por parte dos vários rapazes que compunham a comunidade. Porém apenas o pe. Cardenal conhecia a minha história, pois eu havia lhe contado tudo na noite em que nos conhecemos em São Paulo.
Embora teoricamente eu estivesse certo de minha nova opção — deixar a comunidade trapista e entrar para a Frente Sandinista —, não foi fácil saber que eu estava indo para o campo de batalha pronto pra matar ou morrer. E, por mais contraditório que pareça à primeira vista, quando se aproxima o momento de ir para o campo de batalha, a gente se sempre mais preparado pra morrer do que para matar. Claro, essa visão é muito particular, principalmente em si tratando de um religioso, como era o meu caso. De modo que, quando recebemos a boinha, o lenço rubro-negro e o distintivo da FSLN numa cerimônia concorrida, numa pequena localidade perto da fronteira com Honduras, eu já não estava mais tão convicto de que fizera a coisa certa: trocar a vida de noviço trapista pela vida de guerrilheiro sandinista.
O caminho da luta armada não é nada fácil, mesmo quando se tem o apoio popular, como foi o caso de Cuba, em fins da década de 1950, e o recente caso da Nicarágua. Tudo levava a crer que o movimento ia triunfar, bastava olhar nos olhos do povo, que já estava cansado do tirano que oprimia e que tinha levado toda uma nação à miséria. Cada cidade que tomávamos, crescia a certeza na vitória final. Em muitas localidades não chegamos a disparar um só tiro. Bastava chegar um destacamento da FSLN para o próprio administrador local, fosse ele o prefeito ou o seu substituto, entregar a administração municipal em nossas mãos. Nestes casos não havia substituição, a não ser que a própria população assim o desejasse. O simples fato de reconhecerem a autoridade sandinista, já era suficiente para merecerem a nossa confiança. Também porque precisávamos de gente na frente de batalha e não atrás de uma escrivaninha dando ordens.
As notícias que tive do Brasil nesse período eram muito poucas. De madrugada, quando muitos dormiam, eu tentava localizar alguma rádio brasileira que transmitisse em ondas curtas para saber das notícias. Quando isso não acontecia, recorria à transmissão da BBC para os países de língua portuguesa. Como estava no campo de batalha, se tornava impossível mandar ou receber correspondência de familiares e amigos.
Fiquei sabendo da volta dos exilados brasileiros quando já tínhamos tomado Manágua, depois do 19 de julho, momento em que as coisas começaram a ficar mais tranqüilas para todos nós. Embora ainda houvesse focos de resistência ao novo governo, o fato de estarmos no poder dava um pouco mais de tranqüilidade uma vez que o comando de todas as instituições estavam sob nossa tutela.
Devido a presença maciça de cristãos engajados, sacerdotes e freiras, o governo revolucionário evitava, ao máximo, os expurgos, os exílios e, principalmente, as execuções de traidores do regime ou de fiéis ao tirano. Pouco depois da tomada do poder foram montados Conselhos Revolucionários que tinham como tarefa principal acatar, julgar, absolver ou condenar, além de executar as sentenças contra os traidores da pátria. Escapei desses conselhos sob a alegação de ser estrangeiro, de não conhecer tão profundamente a realidade, com todas as suas nuances, suas redes familiares etc. e tal. Felizmente os meus argumentos convenceram os dirigentes.
Uma coisa é a luta, a batalha frente a frente com o inimigo, ambos armados, prontos para atirar. Nessas horas disparamos o primeiro tiro mais movidos pelo medo do que por qualquer outro sentimento. O que é bem diferente de participar de um tribunal encarregado de decidir se alguém deve morrer ou viver, tudo isso friamente. Eu não teria estômago para tanto. Sempre me assustou muito a idéia do paredón, por mais que ele seja necessário quando se quer estabelecer no poder através da força, mesmo que esta força tenha o apoio popular, como era o nosso caso na Nicarágua sandinista. Tivemos muitas discussões a esse respeito. Os padres, freiras e cristãos engajados discordavam de alguns dirigentes que pregavam com veemência a necessidade dos expurgos e de todos os seus derivados ou variantes. Muito embora a revolução tivesse endurecido em muito aqueles corações, a idéia do perdão ainda estava presente dentro de cada um dos cristãos sandinistas. As discussões teóricas se prolongavam pela noite adentro, permeadas de citações de Lênin, Santo Agostinho, Mao, São Gregório, Trotsky, Santo Tomás, Che, dos Evangelhos, Fidel, e de tantos outros. Chegou-se, enfim, a um meio termo: as execuções seriam evitadas, mas não abolidas totalmente. Em casos de traição, de lesa-pátria, e quando o exílio representasse tão-somente um paliativo, ou um perigo, el paredón seria aplicado, mas apenas como último recurso.
Por onde andaria Bianca durante esse tempo? O que estaria acontecendo à minha irmã e grande amor da minha vida? Eu não sabia. No fundo eu procurava esquecê-la, fosse me enclausurando numa trapa ou me lançando na arriscada aventura de uma revolução num país da América Central ou onde quer que fosse.
Durante cerca de dois anos e meio não mandei nem recebi notícias do Brasil. Por mais que sofresse de saudade, eu tinha consciência de que essa ausência era necessária para acalmarem-se os ânimos e cessar a polêmica que o caso criou no âmbito da Igreja Católica e em alguns setores da imprensa sensacionalista brasileira. De todos que ficaram e acompanharam esse caso de perto, apenas Bianca sabia que meu desaparecimento era temporário. Que nada, nem a distância nem o tempo, seriam suficientes para me fazer esquecê-la. E eu sabia que com ela não era diferente.
Enquanto isso, o tempo corria e os inimigos da revolução sandinistas começavam a pôr as unhas de fora.
Não foi fácil o estabelecimento da ordem pública e social na Nicarágua pós-revolução sandinista. Assim que percebeu que o governo caminhava rumo ao socialismo, o arcebispo de Manágua, monsenhor Miguel Obando Y Bravo, começou a criticar os líderes sandinistas e os rumos que o país estava tomando. Nessa ofensiva sobrou para mim, inclusive, pois além de meu trabalho acadêmico, militava em grupos ligados à Igreja Católica. E não durou muito tempo para dom Obando Y Bravo conseguir um dossiê completo sobre minhas atividades no Brasil, inclusive as denúncias da prática de incesto, condenada pelo catolicismo, e envia-lo para o Vaticano, além de dar ampla divulgação na imprensa nicaragüense, sobretudo nos jornais que faziam oposição ao governo.
Pouco ou quase nenhum efeito suas denúncias tiveram. Eu era um ilustre desconhecido, usava um codinome e ninguém conseguiu fotografia atualizada, mas uma antiga foto 3x4 enviada pela Arquidiocese do Rio de Janeiro, comandada pelo meu conterrâneo, o Cardeal Eugênio Salles, ligado à ala conservadora católica, junto com o famoso dossiê, no qual sofri a primeira denúncia de incesto devido ao envolvimento amoroso que mantinha com a minha irmã Bianca, antes de aceitar o convite do pe. Cardenal para entrar para a Comunidade de Soletiname. Com barba e cabelos grandes, meu rosto guardava muito pouco dos traços originais que apareciam nas fotografias do La Prensa, jornal da família Chamorro, liderado por Violeta Chamorro, que se bandeara para a oposição depois de receber doações de empresários estadunidenses e do próprio governo Reagan.
Na universidade onde eu lecionava só uns poucos estudantes estabeleceram certas relações entre as matérias comigo, mas nada que comprometesse o meu trabalho.
Apesar de não prestar muita atenção ao noticiário, acender aquela polêmica só me faria mal, disso eu tinha certeza. Mesmo sabendo pelo noticiário que o velho cardeal havia enviado um relatório para o Vaticano me denunciando pela prática de incesto, tomei a decisão de não acompanhar o processo, razão pela qual nem sequer procurei entrar em contato com o meu advogado na corte pontifícia, o padre jesuíta Eliomar Ribeiro, doutor em direito canônico que acompanhara o primeiro processo, cujo denunciante tinha sido o cardeal Salles.
Nos primeiros meses após nossa entrada vitoriosa em Manágua chegamos a pensar que o governo não completaria um ano, tão virulenta era a oposição que enfrentava dentro e fora do país.
Em poucos meses a Contra estava com suas fileiras cheias, inclusive muitos dissidentes do regime levaram para ela toda a sua experiência revolucionária, tirando-nos o sono e a tranqüilidade. Por outro lado o Governo Reagan alimentava a Contra de armas sofisticadas, munição e dinheiro, além de nos impor um pernicioso embargo comercial, alegando que a aproximação do governo sandinista da União Soviética e de Cuba transformava a Nicarágua num inimigo em potencial dos interesses dos Estados Unidos na América Central.
Para tentar romper o cerco, Ortega convidou duas personalidades ilustres para visitarem o país: o papa João Paulo II e Madre Teresa de Calcutá, cujas irmãs se espalhavam pelo país tratando dos feridos dos combates.
Diante de um estádio cheio, la madre de los pobres, ao invés de denunciar o mal que o governo Reagan fazia ao país financiando os contra, teve a ousadia de agradecer a ajuda americana ao trabalho humanitário que a sua congregação fazia no país. Não deu outra: a irmã, que décadas depois seria canonizada pelo mesmo João Paulo II, recebeu a maior vaia que alguém poderia receber. Foi mesmo de mau gosto o seu agradecimento ao governo do presidente Reagan, o Grande Satã.
O país estava em ruínas. Os hospitais sem as condições básicas de garantir um bom atendimento; escolas destruídas, o povo assustado, desconfiado, e também decepcionado pois as mudanças e melhorias prometidas pelos líderes da revolução não apareciam.
Ao contrário, alguns dirigentes sandinistas, com a expulsão dos leais ao antigo regime, se apossaram de suas mansões nos bairros nobres de Manágua, para espanto das lideranças populares. Durante a preparação da revolução eram freqüentes as fotos dessas casas nas páginas do jornal da FSLN, o Barricada. Seus donos eram achincalhados, expostos como inimigos da nação. Porque enquanto uma multidão não tinha sequer onde morar, eles residiam em suas belas mansões sem se importarem com o destino do povo. E agora estavam ali, os acusadores de outrora morando nas mesmas belas mansões!
“E então, está gostando de Manágua, mana?” perguntei.
“Um pouco. Quando vocês vão reerguer essa cidade?”
“Vai demorar. O país está passando por sérias dificuldades, o governo Reagan está castigando o país devido à nossa aproximação de Cuba e de Moscou. Como vê, falta tudo neste país: alimentação, transporte, remédios, petróleo. Você não faz idéia o que é comprar uma briga com o Grande Satã.”
“Mas o povo parece alegre.”
“Sim. O povo está alegre. Principalmente hoje, quando comemoramos o primeiro aniversário da revolução. Ninguém agüentava mais tanta opressão. Mesmo faltando muita coisa, pelo menos há liberdade e esperança em dias melhores.”
“E você faz parte disso tudo”, disse Bianca.
“Minha participação foi e continua sendo insignificante, minha irmã. Represento pouco nisso tudo.”
“Você empunhou armas, foi à luta, ajudou a derrotar o tirano. Não era assim que vocês o chamavam?”
“Isso é verdade. Mas desconfio que mesmo sem mim a revolução teria triunfado”, respondi com ar de riso.
“Depois quero que você me fale do Brasil. Minhas informações estão todas atrasadas.”
“Imagino. Ainda demora muito pra chegarmos à Praça da Revolução?”
“Falta pouco. É que o trânsito de Manágua é assim mesmo, caótico.”
“Ele consegue ser um pouco pior do que o de São Paulo.”
“Hoje ele está assim devido às comemorações de aniversário. Normalmente é mais tranqüilo do que isso.”
“Eu preferia ter ficado em seu apartamento. Detesto ter que ficar hospedada em hotel.”
“Meu apartamento é minúsculo. Na verdade é uma quitinete. Depois você vai poder conhecer e verá que agi certo fazendo uma reserva pra você no Hotel Continental.”
“Ainda assim preferiria estar com você.”
“Mas nós não estamos juntos? Não importa muito o lugar.”
“Quanto a isso você tem razão. Você não sente saudade do Brasil?”
“Sinto. É claro que sinto. Mas não pretendo voltar lá nem tão cedo. Por que você não vem passar uma temporada aqui comigo?”, perguntei.
“Não posso largar o trabalho agora. Além do mais papai depende de mim atualmente.”
“Vai ficar só um mês mesmo?”
“E você acha pouco? Logo logo vai estar cheio de mim, vamos apostar.”
“Não fale isso nem de brincadeira.”
“Llegamos, comandante”, disse o motorista.
“Gracias. Não demorou muito, viu?”
“É verdade, não demorou muito mesmo. Que história é essa de comandante?”
“Ele me viu assim, uniformizado, então pensa que sou algum comandante. Esse país está cheio de comandantes agora”, respondi meio sem graça. “A sua credencial. Pendure-a no pescoço para que os seguranças possam ver de longe. Assim evitamos aborrecimentos.”
“Ah, obrigado. Onde vamos ficar?”
“No palanque das autoridades.”
“Mas, por quê? Você não é um simples guerrilheiro?”
“Sou, sou um simples guerrilheiro. Mas é que fui escolhido para representar os estrangeiros que participaram da revolução.”
“Por isso vai ser condecorado?”
“Não, não é por isso.”
“E porque é, então?”
“Por bravura e por ser cristão e revolucionário”, falei.
“Você não me falou sobre isso na carta.”
“Não vinha ao caso.”
“A cerimônia vai demorar muito?”
“Vai. Vai sim. Por quê?”
“Por nada. Perguntei por perguntar. Fidel certamente vai discursar...”
“Claro que vai. A cerimônia está prevista para durar de quatro a cinco horas.”
“Tudo isso? O povo vai desmaiar nesse sol.”
“Todos estão ansiosos por esse dia. Há muitos anos não havia uma festa realmente popular em toda a Nicarágua. O povo daqui parece muito com o do Brasil. Pelo menos no que diz respeito a gostar de festas. Tudo aqui é motivo para uma comemoração. Há poetas por todos os lugares dessa cidade. Depois de uma semana você vai ver que tenho razão.”
Bianca já estava meio cansada de todo aquele alvoroço, e não quis acompanhar o irmão nas outras recepções que se seguiram durante o dia, e retornou ao Hotel Continental, onde estava hospedada, assim que terminou a comemoração na Praça da Revolução.
Estava inquieta naquele fim de tarde e começo de noite, praticamente não havia ficado a sós com o seu irmão, envolvido nas comemorações do primeiro aniversário da revolução. O livro que trouxera para ler durante a viagem, La ciudad y los perros, do peruano Mario Vargas Llosa, descansava solitário no criado-mudo ao lado da cama. “O jeito é reler o livro, a televisão local não passa outra coisa senão a cobertura da festa. E pelo adiantado da hora não vou encontrar nenhuma livraria aberta em toda a Nicarágua”, pensou sem se dar conta de que o país inteiro estava em festa, com todos os estabelecimentos fechados, fossem públicos ou privados. Nem mesmo a alegria de rever o irmão foi suficiente para animá-la a sair do hotel.
Não fazia muito tempo, mas ainda estava vivo em sua memória o dia em que seu irmão chegou falando da decisão de deixar o Brasil e ir morar no arquipélago de Soletiname, na capital nicaragüense, onde estava instalado o mosteiro trapista fundado pelo monge-poeta Ernesto Cardenal, de quem conhecia os versos.
“Talvez seja melhor assim, Bia. As coisas aqui no Brasil estão muito complicadas, não suporto mais tanta pressão.”
“E quanto a mim?”
“Essa viagem não é para sempre. O pe. Cardenal está ciente da nossa situação e falou que assim que as coisas se restabeleceram, posso voltar para o Brasil. Antes devo passar por Cuba, onde vou tirar outros documentos. Roma não pode nem sonhar que estou num mosteiro trapista, mesmo sem o veredicto final do processo. Sou um anátema, esqueceu?”
“Somos, você quis dizer.”
“A pressão maior está sobre mim. Não creio que haverá punição para você. Quando as coisas estiverem bem, a gente se encontra. Quem sabe, resolvo morar em Cuba depois de algum tempo?”
“Em Cuba? Você só pode estar louco! Não, na América Latina não dá pra ficar. Ditadura por ditadura, continuo no Brasil mesmo.”
“Falei isso brincando. E vê se desmancha essa carinha triste que essa viagem não é para sempre. Cê sabe que não sei viver muito tempo longe de você.”
Durante muito tempo ficou sem notícia do irmão, até que estourou a revolução sandinista na Nicarágua e o país começou a ocupar o noticiário dos principais jornais brasileiros e também da televisão. Conhecendo o irmão como conhecia, sabia que não demoraria muito tempo para ele largar a vida tranqüila de Soletiname e ingressar na FSLN.
Foram dias de apreensão e medo.
Quando Anastácio Somoza foi deposto ela ficou mais tranqüila, mesmo não sabendo o paradeiro do irmão. Agora estava ali em Manágua, sozinha num quarto de hotel enquanto o seu amado festejava com amigos os sucessos de uma revolução popular, a primeira a obter sucesso depois de Cuba.
Bianca nunca se sentira atraída por política, de modo que estava longe dela o desejo de participar de qualquer partido ou algo que o valha. Mas sempre respeitou a vontade do irmão, nunca o censurando pelas suas opções políticas. Para ela a liberdade individual de cada um estava acima de tudo e acreditava que esse era o segredo para se manterem unidos durante toda a vida, sem uma discussão acalorada que fosse. Mesmo quando ele resolveu mudar de São Paulo para a Nicarágua, ela o soube respeitar, embora tenha sofrido muito a sua ausência, sobretudo nos primeiros meses. Depois, com o tempo, foi se acostumando.
Pouco depois do triunfo da Revolução Sandinista recebeu uma carta da Embaixada da Nicarágua. No início ficou assustada, pensando no pior. Quando abriu a correspondência deu-se conta que era apenas para que ela confirmasse o seu endereço atual, nada mais. Logo soube do que e de quem se tratava. Semanas mais tarde recebeu uma carta do irmão, fazendo um relato de tudo o que acontecera em sua vida nos últimos dezoito meses, da saída de Soletiname à entrada na FSLN, até o seu ingresso na Universidad Nacional de Manágua e no Conselho Nacional da Educação. Mas não entrava em detalhes quanto a sua vida particular.
A partir dessa carta muitas outras se seguiram.
Em maio de 1980 ele lhe fez o primeiro convite para visitar a Nicarágua. Junto ao convite enviou o número do seu telefone.
“Quando é mesmo esse aniversário?”
“Em julho. Dia 19 de julho é o dia D. Virá uma delegação brasileira para a festa. Como não há vôos regulares entre Brasil e Nicarágua, você pode entrar em contato com esse pessoal. Assim fica mais fácil.”
“Você precisa da resposta hoje?”
“Já. Agora.”
“Tudo bem. Eu vou.”
“Quero que venha passar um mês comigo.”
“Um mês? É muito tempo. Tenho trabalho, compromissos.”
“Converse com o seu chefe. Fale que vem em missão diplomática”, falei rindo.
“Vamos ver.”
“Vamos ver, mana? Então é assim que você gosta de mim!”
“Deixe de chantagem. Você é muito impulsivo. Sabe que acabo acatando as suas decisões.”
“Um mês, então?”
“Tudo bem, você venceu. Passo um mês com você aí na Nicarágua.”
“Tenho certeza que você vai amar Manágua.”
“Eu espero. Mas estar em sua companhia já vai ser muito bom.”
Quando desligou o telefone naquela tarde suas mãos suavam frio. Porque sabia que estava cometendo uma loucura. Largar sua vida tranqüila no Brasil para passar mesmo que um mês num país em construção, como era a Nicarágua, arrasado por uma revolução cujas marcas estavam presentes no cotidiano das pessoas. Mas já estava decidido, ia ficar um mês em Manágua.